Quis Ir Para Bem Longe

Quis ir pra bem longe
Da mentira gasta e sibilante
E do grito contínuo do terror antigo
Que fica mais terrível enquanto o dia
Atravessa o morro e mergulha no mar


Quis ir pra bem longe
Mas tenho medo
Alguma vida nova pode explodir
Da velha mentira que arde no chão
E estalando no ar me deixar meio cego.



Dylan Thomas

Chora, neném

 Ela disse que se chama Lenora. Boca vermelho sangue, olhos pintados como Nefertiti. Ela entrou em cena como se viesse do nada, de algum dia remoto, algum domingo registrado somente em uma fotografia desbotada como só as em preto e branco sabem ser: um desbotado amarelo. A luz estava sobre ela. Era o Senhor derramando sobre seu corpo, recém saído da adolescência, a luz de um milhão de holofotes.  Lenora veio caminhando, sabendo que todos olhavam para ela.

 Lenora. Ela disse que se chama assim. O cabelo cor de areia molhada pela maré alta, banhada na última claridade do dia, amarrado em rabo de cavalo. As pernas, desenhadas por algum arquiteto mitológico atormentado pela solidão em um labirinto do qual nem Ícaro iria conseguir escapar, traziam cada uma, uma curiosidade que a saia não escondeu. Na coxa direita, logo acima do joelho, uma tatuagem feita com pincel atômico preto, o nome de um delinquente juvenil; na esquerda, um joelho enfaixado, surrado por uma entorse. A alma de Lenora estava exposta, nua, branca, tatuada e enfaixada, reproduzida por dois avatares bem torneados. Eu teria guardado sua calcinha na fronha do meu travesseiro.

 A voz tinha qualquer coisa de indecente, como um doce de calda derramado de vagar no fundo da tigela. Era tão macia e quente que não parecia vir dos lábios da boca. Lenora, se é que esse é mesmo o seu nome, sabia bem que papel deveria desempenhar naquele espetáculo e enganou a todos muito bem. Ou quase todos. Decerto ela pensou que podia se fazer passar por cínica. Decerto não lembrou que algum velho conhecido poderia estar entre os expectadores daquela ceninha toda. Ah, não, com certeza tinha alguém que conhecia a sua outra encarnação. A que vestiu a pele pichada de uma devoradora de homens que dizia se chamar Lenora. Teu filho de pelúcia, "feio e louco, ficou só... chorando feito fogo à luz do sol". Segue agora nessa rua escura, quase meia-noite, acompanhada de malucos e outras almas perdidas, tão fingidos quanto você mesma. Come o que tem na mesa e não lança olhares achando que não vão sacar o teu desejo e a tua confusão. Teu livro está aberto para os que foram alfabetizados no teu idioma secreto, em aulas ministradas pela madrugada.

 De toda sorte, à esta altura do campeonato, podemos chamá-la de Lenora. O nome verdadeiro está seguro apenas na voz que vem do estômago, congelado e contraído, de um pobre quadrado que caminha no teu rastro só pra respirar o ar perfumado que teu corpo desloca ao atravessar as ruas. Ela disse pra mim, no meio do último abraço, dado rapidinho como coito escondido dos pais, que apesar do sufoco e da desilusão, o mundo ainda é uma bola e gira bem rápido. Eu sei que o afago no braço no fim daquele enlace era só pra mim. Lenora, você é um perigo, à solta, entre as pessoas de bem, como um caco de vidro perdido na praia, como uma agulha usada e oxidada no meio do pátio. Você é um perigo por que, no fundo, de baixo dessa fantasia, você é honesta.