Isto aconteceu há milhares de anos, e eram as mulheres que governavam: na tribo e na família as mães e as avós eram respeitadas e obedecidas, e dava-se muito maior valor ao nascimento de uma menina do que ao de um menino.
Na aldeia vivia uma bisavó que tinha uns 100 anos ou mais, respeitada e temida como uma rainha, apesar de há tempos imemoriais só de raro em raro mover um dedo ou pronunciar uma palavra. Dias e dias ela ficava sentada à porta de seu casebre, tendo ao seu redor um bando de parentes que a serviam. As mulheres da aldeia vinham prestar-lhe homenagem, contar-lhe o que acontecia em sua casa, mostrar-lhe seus filhos e pedir-lhe que as abençoasse. As mulheres grávidas vinham pedir-lhe que ela tocasse com as mãos o seu ventre e desse um nome à criança esperada. A bisavó às vezes colocava a mão, às vezes só inclinava ou sacudia a cabeça, ou então permanecia completamente imóvel. Raramente pronunciava uma palavra; ficava ali, simplesmente; ficava ali sentada, governando, com seus cabelos de um branco amarelado caindo em finas melenas em redor do rosto de águia, coriáceo e perspicaz. Ficava ali sentada, recebendo homenagens, presentes, pedidos, notícias, relatos e queixas; ficava ali sentada e era conhecida de todos como mãe de sete filhas, avó e bisavó de muitos netos e bisnetos. Ficava ali sentada, o rosto sulcado de fundas rugas e, por detrás da fronte morena, a sabedoria, a tradição, o direito, os costumes e a honra da aldeia.
Era uma tarde de primavera nublada que antecipava o anoitecer. Diante do casebre de barro da bisavó não era ela que estava sentada, mas sim sua filha, pouco menos encanecida do que a bisavó e quase tão velha como ela. Estava sentada, descansando, e seu assento era uma pedra, polida pelo uso, que se cobria no tempo de frio com uma pele. Um pouco afastados, em semicírculo, sentados no chão, na areia ou na relva, estavam algumas crianças, mulheres e meninos que ficavam ali todas as noites em que não chovesse nem esfriasse de congelar, porque queriam ouvir a filha da bisavó contar histórias ou cantar invocações. Antigamente era a própria bisavó que fazia isso, mas agora ela estava idosa demais e perdera a loquacidade, e em seu lugar a filha, ali sentada, contava histórias, e assim como herdara da matriarca todas as histórias e invocações, dela também herdara a voz, as formas, a dignidade calma do porte, dos gestos e da fala, e os mais jovens entre os ouvintes conheciam-na muito melhor do que à sua mãe, e quase nem sabiam mais que ela estava sentada no lugar de outra, narrando as histórias e a sabedoria da tribo. Da sua boca fluía ao entardecer a fonte do saber, ela conservava o tesouro da tribo sob seus cabelos brancos, e por detrás da velha fronte, de sulcos suaves, morava a memória e o espírito do povoado. Os que sabiam provérbios, invocações e histórias, os tinham ouvido dela. Além dela e da matriarca, só existia um homem sábio na tribo, que se conservava oculto, um homem misterioso e muito calado, o conjurador da chuva ou do tempo.
Entre os ouvintes estava sentado no chão também um menino, Servo, tendo a seu lado uma menininha que se chamava Ada. Servo gostava dessa menina e muitas vezes a acompanhava e protegia, não por amor, pois ignorava o significado dessa palavra, sendo ainda uma criança, mas porque era a filha do conjurador da chuva. Servo tinha grande respeito e admiração pelo conjurador da chuva. E depois da bisavó e de sua filha, ninguém respeitava e admirava tanto quanto ele. Mas elas eram mulheres. Podia-se respeitá-las e temê-las, porém não se podia imaginar e desejar ser como elas. Mas o conjurador era um homem pouco acessível, não era fácil para um menino conservar-se ao seu lado, era preciso arranjar um pretexto, e o pretexto de Servo eram os cuidados pela filha dele. Ia buscá-la sempre que podia, no casebre um tanto afastado do conjurador, para sentar-se à noite diante do casebre da velha e ouvir suas narrativas, e depois a levava de novo para casa. O mesmo ele fizera nesse dia, e estava ali sentado no chão ao lado da menina, em meio aos aldeões, ouvindo.
A avó contava nesse dia a história da aldeia das bruxas. Ela contou assim:
“Às vezes há na aldeia uma dessas mulheres más que não desejam o bem de ninguém. Em geral essas mulheres não têm filhos. Às vezes a mulher é tão má que a gente da aldeia não a quer mais em sua companhia. Então vão buscar a mulher de noite, amarram o marido dela, dão uma surra de varas na mulher e depois a levam para bem longe, por matas e pântanos, lançam-lhe uma maldição e a deixam por lá. Depois soltam o marido e, se ele não for muito velho, pode ir procurar outra mulher. Mas a mulher que foi expulsa, se não morrer, fica a perambular pelas matas e pântanos, aprende a linguagem dos bichos e, depois de vagar e perambular por muito tempo, encontra um dia uma aldeia que se chama a aldeia das bruxas. Ali estão reunidas todas as mulheres más que foram expulsas de suas aldeias e construíram então sua própria aldeia. Ali elas vivem, fazem maldades e bruxarias e, como não têm filhos, gostam de atrair crianças das outras aldeias, e, quando alguma criança se perde no mato e não volta mais, talvez não tenha se afogado no pântano nem tenha sido despedaçada por um lobo, e sim atraída por uma bruxa a caminhos errantes e levada por ela à aldeia das bruxas. No tempo em que eu ainda era pequena e minha avó era a mulher mais velha da aldeia, certa vez uma menina, em companhia de outras crianças, foi colher mirtilos e, ao chegar perto dos arbustos de mirtilos, ficou cansada e adormeceu; como ela era muito pequena, as ramagens de uma filicínea a cobriram, e as outras crianças continuaram a andar, sem reparar em nada, e só quando chegaram de novo à aldeia e já era noite perceberam que a menina não estava entre elas.
Mandaram os meninos procurá-la na mata, e eles a chamaram até que anoiteceu, mas voltaram sem encontrá-la. A pequenina, porém, depois de dormir bastante, continuou a caminhar pela floresta, foi andando, foi andando... E quanto mais medo ela sentia, mais depressa andava, há muito tempo não sabia mais onde estava, e ia andando, se afastando cada vez mais da aldeia, por lugares onde nunca ninguém tinha estado. Ao pescoço ela trazia um cordão de fibra com um dente de javali, que o pai lhe dera de presente; ele tinha trazido o dente de uma caçada, fazendo nele um buraco com um estilhaço de pedra, para passar a fibra, tendo antes cozinhado três vezes o dente em sangue de javali, fazendo ao mesmo tempo invocações, e quem usasse um dente desses estava protegido de muitas feitiçarias. Então veio vindo por entre as árvores uma mulher que era uma bruxa e, com uma expressão de doçura na face, disse:
“— Seja bem-vinda, linda criança, você se perdeu? Venha comigo, eu vou levá-la para casa.
“A criança foi com ela. Mas lembrou-se do que a mãe e o pai lhe tinham dito: nunca devia mostrar a um estranho o dente de javali, e então, enquanto iam andando, ela, às escondidas, soltou o dente do cordão de fibra e o pôs no cinto. A estranha foi andando com a menina durante horas e horas, e já era noite quando elas chegaram à aldeia, não a nossa aldeia, mas a aldeia das bruxas. Então trancaram a menina numa estrebaria escura, e a bruxa foi dormir no seu casebre. De manhã cedo a bruxa disse:
“— Você não tem um dente de javali?
“A criança disse que não, que tinha tido um mas que o perdera no mato, e mostrou seu cordãozinho de fibra onde não havia mais dente nenhum. Então a bruxa foi buscar uma vasilha de pedra com terra dentro, onde cresciam três ervas. A criança olhou para as ervas e perguntou o que era aquilo. A bruxa apontou para a primeira erva e disse:
“— Essa é a vida de sua mãe.
“Depois apontou para a segunda e disse:
“— Essa é a vida de seu pai.
“Depois apontou para a terceira erva:
“— E essa é a sua própria vida. Enquanto essas ervas se conservarem verdes e crescerem, vocês continuarão vivos e com saúde. Se uma delas murchar, aquele cuja vida ela representa ficará doente. Se uma delas for arrancada como eu vou arrancar esta agora, então morrerá aquele cuja vida ela representa.
“Ela segurou com os dedos a erva que representava a vida do pai e começou a puxá-la, e já tinha puxado até aparecer um pedacinho de raiz branca, quando a erva soltou um profundo suspiro...”
Ao ouvir essas palavras, a menininha deu um salto ao lado de Servo, como se uma serpente a tivesse picado, soltou um grito e saiu correndo desabaladamente. Havia lutado muito tempo contra o medo que a história lhe dava e não pudera suportar mais. Uma mulher idosa riu-se. Outros ouvintes não sentiam menos medo do que a pequenina, mas se dominaram e ficaram sentados. Mas Servo, assim que despertou do estado de sonho em que estivera ouvindo, e do medo que sentia, também pulou e saiu correndo atrás da menina. A avó continuou a contar a história.
A casa do conjurador da chuva ficava perto do fogo sagrado da aldeia, e Servo foi andando nessa direção, atrás da menina que fugira. Murmurando, cantando e sussurrando, ele tentou atraí-la e acalmá-la, imitando a voz de uma mulher que estivesse chamando galinhas, uma voz prolongada, doce, sedutora como um feitiço.
— Ada — exclamava, cantarolava ele —, Ada, Adinha, venha cá! Ada, não tenha medo, sou eu, eu, Servo.
Assim ia ele cantarolando sem cessar e, antes que ouvisse ou visse a menina, sentiu de repente a mãozinha macia de Ada enfiar-se na sua. Ela havia ficado no caminho, com as costas grudadas à parede de um casebre, esperando o menino, desde que o ouvira chamá-la. Com um profundo suspiro, aproximou-se dele, que lhe parecia grande e forte, um homem feito.
— Você teve medo, é? — perguntou ele. — Não precisa ter medo, ninguém vai lhe fazer nada, todos gostam da Ada. Venha, vamos para casa.
— Você teve medo, é? — perguntou ele. — Não precisa ter medo, ninguém vai lhe fazer nada, todos gostam da Ada. Venha, vamos para casa.
Ela ainda tremia e soluçava um pouquinho, mas já estava mais calma, e foi com ele, grata e confiante.
Pela porta do casebre saía um vislumbre de luz rubra, e lá dentro o conjurador da chuva estava agachado ao pé do fogo: seus cabelos compridos tinham uma cintilação rubra, ele acendera o fogo e cozinhava qualquer coisa em duas panelinhas. Antes de entrar com Ada, Servo ficou por alguns segundos olhando do lado de fora, curioso; viu logo que não era comida que ele estava fazendo, porque isso se fazia em outras panelas, e já era tarde demais para isso. Mas o conjurador já o tinha escutado.
— Quem está aí na porta? — exclamou. — Vamos, entre! É você, Ada?
Cobriu as suas panelinhas, rodeou-as de brasas e de cinza e virou-se para trás.
Servo continuava a lançar olhares para as misteriosas panelinhas, sentindo a um só tempo curiosidade, respeito e acanhamento, como sempre que entrava ali. Fazia-o todas as vezes que podia, procurando toda espécie de pretextos e motivos, mas sentindo sempre um leve prurido de prazer e receio, um sentimento de leve acanhamento, em que o desejo e a alegria lutavam contra o medo. O velho já devia ter percebido que Servo o seguia havia muito tempo, aparecendo sempre ao seu lado onde quer que imaginasse encontrá-lo, seguia o seu rastro como um caçador, oferecendo-lhe em silêncio seus serviços e sua companhia.
Túru, o conjurador da chuva, fitou-o com seus olhos claros de ave de rapina.
— Que quer você aqui? — perguntou com frieza. — Isso não são horas de fazer visitas, meu rapaz.
— Eu vim trazer a Ada, mestre Túru. Ela estava com a bisavó, e nós escutávamos histórias, a história da bruxa, e de repente ela ficou com medo e gritou, e então eu fui atrás dela e a trouxe até aqui.
O pai virou-se para a pequena:
— Você é medrosa como uma lebre, Ada. As meninas ajuizadas não precisam ter medo de bruxas. Você é uma menina ajuizada, não é mesmo?
— Sou, sim. Mas as bruxas sabem uma porção de feitiços, e quando a gente não tem nenhum dente de javali...
— Ah! Você queria ter um dente de javali? Vamos ver. Mas eu sei de uma coisa que é melhor ainda do que isso. Conheço uma raiz, que vou trazer para você, no outono nós vamos procurá-la e tratar dela, essa planta protege as meninas ajuizadas contra todas as feitiçarias, e faz com que as meninas fiquem ainda mais bonitas do que são.
Ada sorriu e alegrou-se, já mais calma, desde que sentira o cheiro do casebre e vira o clarão bruxuleante do fogo em seu redor. Servo perguntou com timidez:
— Eu não poderia ir procurar essa raiz? Você só precisa me dizer como ela é...
Túru apertou os olhos.
— Muitos rapazinhos gostariam de saber isso — disse ele, com voz levemente irônica mas sem maldade —, ainda temos muito tempo. Talvez no outono.
Servo retirou-se, desaparecendo na direção da casa dos meninos, onde ele dormia. Pais ele não tinha, era órfão, e era também por isso que Ada e seu casebre o encantavam.
Túru, o conjurador da chuva, não era homem de muitas palavras, não gostava de escutar os outros nem de falar, muitos o consideravam um esquisitão, e muitos o tinham na conta de um rabugento. Mas ele não era nada disso. Ele sabia aliás muito mais coisas que se passavam em seu redor do que se poderia esperar de seus modos distraídos de sábio e ermitão. Entre outras coisas ele sabia muito bem que esse menino inteligente e um pouco chato, mas bonito e franco, o seguia e observava, Túru percebera isso desde o começo, um ano atrás ou talvez mais.Também sabia muito bem o que isso significava. Tinha um enorme significado, tanto para o rapaz quanto para ele, o velho. Significava que esse rapazinho estava entusiasmado pela arte de conjurar o tempo e que não havia nada que ele mais desejasse do que aprendê-la. Sempre existiram meninos assim no povoado. Vários já haviam vindo de lá com o mesmo intuito. Alguns se tinham assustado ou desanimado, outros não, e ele já tivera dois meninos durante muitos anos como alunos e aprendizes que depois se casaram em outras aldeias e se tornaram conjuradores da chuva e ervanários. Desde então Túru ficara sozinho, e caso arranjasse de novo um aprendiz só o faria para ter um dia um continuador. Sempre tinha sido assim, isso estava certo e não poderia ser de outra forma: era preciso que um menino inteligente aparecesse e se apegasse a Túru, seguindo esse homem que era um mestre no seu ofício, conforme o menino podia perceber. Servo era bem-dotado, tinha todas as qualidades necessárias e possuía também alguns sinais que o distinguiam: tinha antes de tudo um olhar inquiridor, a um só tempo penetrante e sonhador, um temperamento modesto e calado e pela expressão do rosto e da cabeça evidenciava possuir faro, senso divinatório, vigilância, atenção por ruídos e cheiros, um jeito de pássaro e de caçador. Certamente, esse menino podia tornar-se um conjurador da chuva, talvez até um mágico, era um menino aproveitável. Mas não havia pressa, ele tinha ainda pouca idade, e não era necessário demonstrar que lhe davam valor, não se devia facilitar as coisas, nenhum caminho lhe devia ser poupado. Não o prejudicaria em nada, se fosse possível intimidá-lo, amedrontá-lo, sacudi-lo e desencorajá-lo. Ele teria de esperar e servir, de nada valendo aproximar-se sorrateiro de Túru, procurando conquistá-lo.
Servo foi andando distraído pela noite que caía, sob o céu nublado, com duas ou três estrelas, satisfeito e entusiasmado, na direção da aldeia. De todos os prazeres, belezas e delicadezas que são para nós, hoje em dia, uma coisa natural e indispensável, e pertencem até aos mais pobres, o povoado nada conhecia, desconhecendo a instrução e as artes, só conhecendo casebres de barro irregulares, nada sabendo a respeito dos instrumentos de ferro e de aço, mesmo coisas como o trigo ou o vinho eram desconhecidas, e descobertas como as velas ou lâmpadas seriam milagres da luz para os homens de então. A vida de Servo e seus pensamentos não eram por isso menos ricos, o mundo o rodeava como um mistério infinito e um livro de imagens, e cada dia que passava ele conquistava uma pequenina parte desse mundo, e desde a vida dos animais e o crescimento das plantas até o céu constelado, entre a natureza muda e misteriosa e a alma individual que respirava em seu peito medroso de menino, existiam todos os parentescos, e também toda a ansiedade, curiosidade e ânsia de aprender de que é capaz a alma humana. No seu mundo não havia nenhum conhecimento escrito, nem história, nem livro, nem alfabeto, e tudo o que ficava a mais de três ou quatro horas da sua aldeia lhe era totalmente desconhecido e inatingível, mas em compensação ele vivia intensamente e integrado em seu mundo, a aldeia. A aldeia, a pátria, a comunidade tribal, sob a direção das matriarcas, dava-lhe tudo o que o povo e o Estado podem oferecer aos homens: um solo com raízes aos milhares, em cuja trama ele próprio era uma fibra, participando de tudo.
Satisfeito, ele ia andando distraído, e nas árvores ciciava o vento noturno, com leves estalidos, havia um cheiro de terra úmida, de junco e lama, de fumaça de lenha verde, um cheiro gorduroso e almiscarado, que significa mais do que qualquer outra espécie de pátria, e afinal, quando Servo se aproximou do casebre dos meninos, sentiu seu próprio cheiro: cheiro de meninos, de corpos jovens. Em silêncio, ele se esgueirou por sob a esteira de junco nas trevas quentes, que respiravam; deitou-se na palha e se pôs a pensar na história da bruxa, no dente de javali, em Ada, no conjurador da chuva e suas panelinhas ao fogo, até que adormeceu.
Túru ia ao encontro do menino a passos muito lentos, não lhe facilitava as coisas. Mas o rapaz estava sempre no seu rastro, o velho o atraía, ele mesmo não sabia por quê. Muitas vezes, quando o velho, em qualquer parte, no lugar mais oculto da mata ou do pântano, fazia uma armadilha, farejava o rastro de algum animal, arrancava uma raiz ou semeava algumas sementes, sentia de súbito o olhar do menino, que o seguia já havia muitas horas, em silêncio e invisível, espreitando-o. Então, muitas vezes ele fingia não o notar; às vezes resmungava e, sem piedade, mandava embora o seu perseguidor, mas outras vezes lhe acenava e o conservava ao seu lado durante o dia todo, aceitando seus serviços, mostrando-lhe uma coisa e outra, deixando-o adivinhar, submetendo-o a provas, dizendo-lhe o nome de ervas, mandando-o buscar água ou acender o fogo, e a cada coisa que ele fazia, mostrava-lhe o seu manejo, suas vantagens, segredos e fórmulas, que o rapaz era obrigado a conservar na memória, guardando segredo. E finalmente, quando Servo ficou um pouco maior, Túru conservou-o a seu lado, reconhecendo-o como seu aprendiz, tendo ido buscá-lo no dormitório dos meninos para levá-lo ao seu próprio casebre. Assim Servo ficou conhecido de todo o povo: não era mais uma criança, era um aprendiz em casa do conjurador da chuva, e isso significava que, se ele aguentasse e valesse para alguma coisa, seria seu sucessor.
Desde a hora em que Servo foi recebido pelo velho em seu casebre, a barreira que existia entre eles caíra, não a barreira do respeito e da obediência, mas a da desconfiança e da reserva. Túru tinha se dado por vencido, deixando-se conquistar pela tenacidade de Servo; agora, a única coisa que desejava era fazer dele um bom conjurador da chuva e seu seguidor. Para essa instrução não eram necessários conceitos, teorias, métodos, linguagem escrita ou números, bastavam algumas palavras, eram muito mais os sentidos de Servo do que mesmo sua inteligência que o mestre educava. Tratava-se não só de conservar e praticar um tesouro de tradições e de experiência, o conjunto dos conhecimentos que os homens de então possuíam sobre a natureza, como também de transmiti-los para o futuro. Um enorme e compacto sistema de experiências, observações, instintos e hábitos de pesquisa erguia-se lentamente diante do adolescente, e quase nada era apresentado em forma de ideias, sendo necessário pressentir, aprender e experimentar quase tudo com os sentidos. Mas a base e a essência dessa ciência eram os conhecimentos sobre a lua, suas fases e sua influência, essa mesma lua que crescia e desaparecia, povoada pelas almas dos mortos, e que enviava essas almas a novos nascimentos, deixando espaço para novos mortos.
Assim como acontecera naquela tarde em que, após ouvir a narradora de histórias, ele se havia encaminhado para a casa do velho com as suas panelinhas no fogão, outra situação também se gravou na memória de Servo, na passagem da noite para a madrugada em que o mestre o despertou duas horas depois da meia-noite, saindo com ele no meio de profundas trevas, para mostrar-lhe a lua minguante em sua última fase a erguer-se no céu. Depois, em meio às colinas da mata, eles pararam, o mestre numa impassibilidade silenciosa, o rapaz meio receoso e tiritando por haver dormido pouco, ficaram um longo tempo sobre a laje de uma rocha solitária, até que o traço curvo e delgadíssimo da lua minguante apareceu no lugar anunciado pelo mestre, com a forma e a inclinação que ele indicara. Medroso e encantado, Servo fitava o astro que subia com lentidão, boiando suavemente entre as sombras das nuvens, pousando sobre uma alva ilha celeste.
— Logo ela vai mudar de forma e crescer de novo, e então chega o tempo de semear o trigo sarraceno — disse o conjurador da chuva, contando nos dedos os dias que faltavam.
Depois mergulhou novamente no silêncio anterior, e Servo, como se o houvessem abandonado, sentou-se sobre a pedra luzidia de orvalho, tiritava de frio, enquanto lá de dentro da mata subia um pio muito longo de coruja. O velho ficou um bom tempo refletindo, depois ergueu-se, colocou a mão sobre os cabelos de Servo e disse baixinho, como se despertasse de um sonho:
— Depois da minha morte, meu espírito vai voar para a lua. Você será então um homem, e vai ter uma mulher; minha filha Ada vai ser sua mulher. Quando ela tiver um filho seu, meu espírito voltará para morar no corpo de seu filho, e você lhe dará o nome de Túru, como eu me chamei.
Admirado, o aprendiz ouvia, sem coragem de pronunciar palavra, enquanto a fina e prateada lua minguante subia no céu, já quase tragada pelas nuvens. O rapaz teve então um estranho pressentimento das relações e conexões, repetições e cruzamentos entre as coisas e os fatos, e maravilhou-se de se encontrar ali, como espectador e participante, ante o estranho firmamento noturno onde, por sobre as matas e colinas sem fim, a nítida e delgada lua minguante surgira, anunciada de modo exato pelo mestre. Parecia-lhe maravilhoso aquele mestre, envolto em milhares de mistérios, pensando em sua própria morte, e cujo espírito iria pairar na lua, de lá voltando em um homem que seria filho de Servo e que deveria receber o mesmo nome que o falecido mestre. O futuro, de súbito, parecia ter-se aberto milagrosamente, como o céu nublado se mostrava de espaço a espaço; o destino parecia estender-se diante dele, e o fato de ser possível conhecê-lo, dar-lhe um nome e falar a seu respeito parecia-lhe a contemplação de vastos espaços, cheios de maravilhas, onde no entanto reinava a ordem. Por um instante ele teve a impressão de que o espírito tudo apreendia, tudo sabia, tudo escutava: o silencioso e seguro curso dos astros nas alturas, a vida dos homens e dos animais, suas uniões e hostilidades, encontros e lutas, as coisas grandiosas e as insignificantes, juntamente com a morte, parte integrante dos seres viventes, tudo isso ele viu ou sentiu numa primeira visão premonitória, como um todo no qual ele também estava integrado qual uma coisa harmoniosa, regida por leis, acessível ao espírito. Foi esse o primeiro pressentimento dos grandiosos mistérios, da sua dignidade e profundeza, assim como da sua compreensibilidade, que no frescor noturno-matutino da mata, sobre o rochedo, acima de milhares de copas sussurrantes, roçou de leve o adolescente, qual a mão de um espírito. Ele não podia falar nessas coisas, nem naquela época nem pelo resto de sua vida, mas pensava muitas vezes naquilo, e em toda a sua vida e experiências futuras essa hora e essa vivência estiveram sempre presentes. “Pense nisso”, advertia ela, “pense que tudo isso existe, que entre a lua, você, Túru e Ada perpassam radiações e fluxos, que existem a morte, a região das almas e o retorno à terra, e que para todas as imagens e fenômenos do mundo há uma resposta no íntimo de seu coração, e tudo lhe diz respeito; você deveria conhecer tudo o que um homem pode saber a respeito das coisas”. Foi mais ou menos assim que essa voz falou. Foi a primeira vez que Servo percebeu a voz do espírito, sua sedução, suas exigências, sua conquista mágica. Já vira muitas luas vogando no céu, ouvira muitos pios noturnos de coruja, e da boca do mestre, apesar de ele ser parco em palavras, escutara muitas palavras da antiga sabedoria ou de contemplações solitárias — mas nessa hora foi uma coisa nova e diferente, foi um pressentimento do todo que o atingiu, o sentimento das conexões e correlações, da ordem, que também lhe diziam respeito e o tornavam participante de tudo, o responsável por tudo. Quem possuísse a chave desse pressentimento não podia apenas reconhecer pelas pegadas um bicho, pelas raízes ou sementes uma planta, mas conhecia também a totalidade do universo: astros, espíritos, homens, animais, remédios e venenos; tudo ele poderia compreender em seu conjunto, reconhecendo em cada uma das partes e sinais isolados todas as outras partes. Havia caçadores que sabiam decifrar melhor do que outro um rastro, um pouco de esterco, um pelo ou resíduos: por alguns pelinhos insignificantes sabiam não só de que espécie de animal provinham, mas também se se tratava de um animal velho ou novo, macho ou fêmea. Outros, pela forma de uma nuvem, um cheiro no ar, o comportamento dos animais ou das plantas, sabiam prever o tempo com antecedência de vários dias; seu mestre era inexcedível nisso, e quase infalível em seus julgamentos. Havia pessoas que tinham certas habilidades de nascença, como os meninos que conseguiam acertar uma pedra num pássaro a trinta passos de distância, sem nunca o ter aprendido; tinham simplesmente essa habilidade, que praticavam sem esforço, como por encanto ou por um dom divino; a pedra voava por si só de sua mão, querendo acertar, como o pássaro queria ser atingido. Diziam que havia pessoas que podiam prever o futuro: sabiam se um doente ia morrer ou não, se uma mulher grávida ia ter um menino ou uma menina. A filha da avó era célebre nisso, e o conjurador da chuva também possuía, conforme diziam, traços desse saber. Servo teve nesse momento a impressão de que na trama gigantesca das correlações devia haver um ponto central de onde se podia ver e decifrar o passado e o porvir. O homem que se encontrasse nesse ponto central veria correr ao seu encontro o saber, assim como a água corre para o vale e a lebre para a couve, sua palavra teria força e acertaria infalivelmente, qual uma pedra atirada por um caçador exímio; esse homem, pela força do espírito, reuniria em si todos esses dons e faculdades maravilhosos, deixando-os agir livremente no íntimo de seu ser: esse seria o homem perfeito, sábio, inexcedível! Tornar-se seu igual, aproximar-se desse ideal, estar a caminho dele, esse era o objetivo dos objetivos, era a meta final, dava à vida santidade e significado. Era mais ou menos isso que ele sentia, e o que nós, com nossa linguagem conceitual, para ele desconhecida, tentamos exprimir agora não pode descrever nem a comoção do menino nem o ardor da sua vivência. Tudo o que Servo vivera nesse dia, o levantar-se à noite, sendo conduzido pela mata escura e silenciosa, cheia de perigos e mistérios, a permanência na laje rochosa lá no alto, ao frio da manhã, o aparecimento do fantasma sutil da lua, as poucas palavras daquele homem sábio, o fato de estar sozinho com o mestre em hora insólita, tudo isso Servo vivenciou e conservou dentro de si como uma solenidade e um mistério: a solenidade da iniciação, a acolhida em uma liga e um culto; suas relações com o invisível e o mistério cósmico eram as de um servidor, mas eram relações honrosas. Essa vivência e muitas outras não podiam se transformar em ideias e menos ainda em palavras, e para Servo o mais longínquo e impossível dos pensamentos seria este: “Serei somente eu quem cria esta vivência ou será também a realidade objetiva? Sentirá o mestre o mesmo que eu ou estará rindo de mim? Serão os meus pensamentos, no momento desta vivência, novos, próprios, únicos, ou o mestre, e outros antes dele, tiveram as mesmas vivências e os mesmos pensamentos?” Não, essas diferenças não existiam, tudo era realidade, tudo estava embebido de realidade, como a massa de pão é embebida de fermento. As nuvens, a lua e o espetáculo cambiante do firmamento, o solo de rocha calcárea, molhado e frio sob seus pés descalços, o frio úmido do orvalho, emanando em névoa na atmosfera lívida da noite, o acolhedor aroma familiar de lareira fumegante e folhas secas de que se impregnara à pele que o mestre trazia envolvendo os flancos, o tom de dignidade, e um eco de velhice e resignação à morte na voz rouquenha — tudo isso era mais que real, e penetrava quase à força nos sentidos do adolescente. E, para a memória, as impressões dos sentidos são um substrato mais profundo do que os melhores sistemas e métodos de pensar.
O conjurador da chuva era das poucas pessoas que exerciam uma profissão, e havia adquirido uma arte e uma faculdade especiais, mas sua vida cotidiana não era tão diferente da dos outros, em seu aspecto exterior. Era um alto funcionário e gozava de consideração, recebendo também contribuições e remuneração da tribo sempre que prestava algum serviço à coletividade, o que só acontecia em determinadas ocasiões. Sua função mais importante e solene, uma função sagrada, era marcar na primavera o dia da semeadura de cada espécie de fruto e de verdura; fazia-o sob a estrita observância das fases da lua, em parte de acordo com certas regras tradicionais, em parte baseado na própria experiência. Mas a cerimônia solene da inauguração, a semeadura do primeiro punhado de grãos e de sementes nas terras da comunidade, não fazia parte de suas funções, pois nenhum homem tinha um posto tão elevado para isso; esse ato era realizado todos os anos pela própria bisavó, ou por sua parenta mais velha. Só nas ocasiões em que o mestre exercia realmente as funções de conjurador da chuva é que era a pessoa mais importante da aldeia. Isso acontecia quando uma seca prolongada, a umidade e o frio prejudicavam os campos, e a ameaça da fome pairava sobre a tribo. Então Túru tinha de empregar os meios conhecidos contra a seca e a esterilidade do solo: sacrifícios, exorcismos e procissões. Reza a lenda que, quando todos os outros meios falhavam durante uma seca prolongada ou em chuvas infindáveis, e os espíritos não se aplacavam com nenhuma espécie de exortação, pedido ou ameaça, era usado um último e infalível meio, que parece ter sido utilizado com frequência nos tempos das mães e das avós: o holocausto do próprio conjurador da chuva pela comunidade. Dizia-se que a bisavó ainda havia assistido a um desses holocaustos.
Além dos cuidados com o tempo, o mestre tinha ainda uma atividade particular como invocador de espíritos, preparando amuletos e feitiços, e fazendo em certos casos o papel de médico, sempre que essa função não era privativa da bisavó. Afora isso, mestre Túru vivia como toda a gente. Quando chegava a sua vez, ele auxiliava a preparar a terra da comunidade, e tinha também ao lado de seu casebre a sua hortinha. Apanhava frutas, cogumelos e lenha, e guardava-os. Pescava e caçava, e possuía uma ou duas cabras. Era um campônio como outro qualquer, mas como caçador, pescador e ervanário não se assemelhava a ninguém, percorria o seu próprio caminho, era genial, e tinha a fama de conhecer uma porção de manhas, astúcias, vantagens e expedientes, quer naturais, quer mágicos. Diziam que ele trançava um laço de vime de que nenhum animal podia soltar-se, sabia preparar de certa maneira as iscas para pescar, com um aroma e um gosto especiais, sabia atrair caranguejos, e algumas pessoas acreditavam que ele entendia também a linguagem de vários animais. Mas o que ele dominava realmente era sua ciência mágica: a observação da lua e das estrelas, o conhecimento do tempo, o pressentimento das variações atmosféricas e do crescimento das plantas, a ocupação com tudo aquilo que estivesse relacionado com os atos de magia. De modo que era perito conhecedor e colecionador de toda espécie de planta ou de bicho que servisse de remédio ou de veneno, que fosse benéfica ou protegesse contra qualquer espécie de malefício. Conhecia e encontrava ervas, mesmo as mais raras, e sabia onde e quando elas floresciam e davam sementes; conhecia também o tempo próprio para desenterrar suas raízes. Conhecia e encontrava toda espécie de cobras e tartarugas, conhecia perfeitamente o emprego de chifres, cascos de cavalo, garras e pelos, sabia lidar com as abantesmas, os monstros, trasgos e assombrações, e também com as excrescências, gosmas e verrugas nos troncos, nas folhas, em grãos e nozes, chifres e cascos.
Servo tinha de aprender menos com o intelecto do que com os sentidos, com os pés e as mãos, os olhos, o tato, ouvido e olfato, e Túru ensinava muito mais pelo exemplo e pelo conhecimento sensível das coisas do que por palavras e um ensino teórico. Era raro que o mestre falasse com nexo, e mesmo então as palavras serviam apenas para esclarecer seus gestos, de grande força expressiva. Os ensinamentos que Servo recebia não eram muito diversos do aprendizado de um caçador ou pescador com um mestre dessas artes, e esse ensino lhe proporcionava enorme alegria, porque ele só aprendia o que já sabia inconscientemente. Aprendia a ficar de tocaia, espiando, de ouvido atento, aprendia a aproximar-se pé ante pé, a observar, a se pôr na defensiva ou ficar vigilante e atento, a farejar e a procurar uma pista, mas a caça que ele e seu mestre procuravam não eram só a raposa e o texugo, a víbora e a tartaruga, o pássaro e o peixe, mas o espírito, o todo, o sentido e a coerência das coisas. Eles estavam atentos para determinar com exatidão o tempo fugitivo e caprichoso, para reconhecer, adivinhar e prever suas variações, para perceber nos bagos de fruta e na mordida da cobra a morte neles contida, para espreitar o segredo que reside na relação das nuvens e tempestades com as fases da lua, as quais exercem uma ação sobre a semeadura e o crescimento, assim como sobre o viço ou o apagar da vida em homens e animais. Na verdade, eles aspiravam à mesma meta da ciência e da técnica dos milênios posteriores, ao domínio da natureza e ao manejo de suas leis, mas o faziam por um caminho completamente diverso. Não se separavam da natureza nem tentavam descobrir seus segredos à força, nunca se contrapondo a ela ou lutando contra ela. Continuavam parte integrante da natureza, com inteira e devota entrega de si próprios. É bem possível que a conhecessem melhor e soubessem contorná-la com mais inteligência que os homens de hoje. Mas havia algo que lhes era completamente impossível, mesmo nos seus mais arrojados pensamentos: dedicar-se e submeter-se à natureza e ao mundo espiritual sem medo, e muito menos enfrentá-los. Essa hybris lhes era desconhecida e lhes pareceria impossível ter outras relações com as forças da natureza, com a morte e os demônios que as do medo. O medo reinava soberano sobre a vida dos homens. Parecia impossível vencê-lo. Mas os diversos sistemas de sacrifícios religiosos serviam para suavizá-lo, encerrá-lo dentro de determinadas formas, iludi-lo, mascará-lo, integrando-o no conjunto da vida. O medo era a pressão sob a qual decorria a vida dessa gente, e sem o predomínio do medo sua vida não teria horrores, mas lhe faltaria intensidade. Quem conseguisse transformar uma parte desse medo em veneração tinha alcançado uma coisa importantíssima, e tais homens, que haviam transformado o medo em devoção, eram os bons e evoluídos dessa época. Realizavam-se constantes sacrifícios, sob formas variadas, cabendo determinada parte desses sacrifícios e ritos às funções do conjurador da chuva.
Ao lado de Servo crescia no casebre a pequena Ada, uma bela criança, o encanto do velho, e quando este julgou acertado o momento, deu-a ao discípulo por mulher. Desde então Servo foi considerado auxiliar do conjurador da chuva, Túru apresentou-o à matriarca da aldeia como seu genro e sucessor, e deixava-o substituí-lo em muitas ocupações e funções de seu cargo. Pouco a pouco, no decorrer das estações e dos anos, o conjurador da chuva foi mergulhando na vida de solitária contemplação dos velhos, passando a Servo todas as suas ocupações, e ao morrer — encontraram-no morto, agachado ao lado do fogo do lar, inclinado sobre algumas panelinhas cheias de uma beberagem mágica, com os cabelos brancos chamuscados pelo fogo —, o jovem, o discípulo Servo, já era havia muito tempo conhecido na aldeia como um conjurador da chuva. Ele exigiu do conselho da aldeia um enterro com honras para seu mestre e instrutor, queimando sobre seu túmulo um montão de genuínas e preciosas ervas medicinais e raízes. Já fazia também muito tempo que isso acontecera, e entre os filhos de Servo, que formigavam na cabana de Ada, havia um menino que se chamava Túru: em seu corpo o velho retornara de sua viagem de morto à lua.
A Servo sucedeu o mesmo que outrora a seu instrutor. Uma parte do seu medo transformou-se em devoção e espiritualidade. Uma parte de seus anseios juvenis e de sua profunda aspiração conservou-se vivente, outra parte morreu, esgotando-se no trabalho, à medida que ele envelhecia, e esgotando-se também no amor e nos cuidados que ele dedicou a Ada e às crianças. Objeto de seu grande amor e persistente pesquisa eram a lua e sua influência sobre as estações do ano e as variações atmosféricas; nesse assunto ele atingiu a sabedoria de Mestre Túru, chegando mesmo a ultrapassá-lo. E já que o crescer e minguar da lua estavam em relação tão íntima com a morte e o nascimento humanos, e por ser o medo da morte o mais forte dos temores que acompanham os homens no decorrer da vida, Servo, o adorador e conhecedor da lua, adquirindo um íntimo e vivo contato com esse satélite, chegou também a um contato santo e purificado com a morte; na idade madura ele não era escravo do medo da morte como os outros homens. Sabia falar respeitosamente com a lua, implorante ou com carinho, tinha a consciência de estar ligado a ela por laços espirituais sutis, conhecia com exatidão a vida desse astro, participando com todo o seu ser de tudo o que se passava sobre ele e com ele. Vivenciava seu desaparecimento e seu novo nascimento como um mistério, sofrendo com a lua, e assustava-se quando os tempos de horror sobrevinham, e ela parecia exposta a enfermidades e perigos, a transformações e danos, ou quando perdia seu fulgor, mudava de cor, escurecia, desaparecendo quase por completo. Aliás, durante esse período todos se interessavam pela lua, temendo por ela, vendo ameaças e a aproximação de desgraças em seus eclipses, e fitando a medo seu rosto decrépito e enfermo. Justamente nesses períodos percebia-se que Servo, o conjurador da chuva, tinha uma ligação mais íntima com a lua e conhecia-a melhor do que as outras pessoas; na verdade sofria com o destino da lua, sentia o coração angustiado de medo por ela, mas a recordação que ele guardava de tais fenômenos era mais nítida e consciente, sua confiança mais fundada, sua crença na eternidade e no renascimento, na possibilidade de corrigir e vencer a morte, maior do que a deles, e maior também o grau de sua devoção; nessas horas ele sentia-se pronto a participar do destino do astro até seu completo declínio e renascimento, sentindo mesmo por vezes um certo atrevimento, a coragem e a decisão temerárias de enfrentar a morte por meio do espírito, e fortificar seu próprio eu pela devoção a destinos sobre-humanos. Traços desses sentimentos penetraram em seu ser e eram notados pelos outros; ele adquiriu a fama de um homem sábio e devoto, possuidor de grande calma e pouquíssimo receio da morte, de um indivíduo em boas relações com as potências. Servo teve de pôr à prova esses dons e virtudes em duras provações. Certa ocasião teve de resistir a um período de crescimento desordenado das plantas e de condições atmosféricas adversas que se prolongaram por dois anos; essa foi a mais dura provação de sua vida. Os contratempos e maus sintomas principiaram pelas semeaduras, atrasadas repetidas vezes, atacadas em seguida por toda espécie de pragas e malefícios, e praticamente destruídas. O povo sofreu impiedosa fome, e Servo com ele, e era de admirar que o conjurador da chuva não tivesse desmerecido da confiança e influência de que gozava, e pudesse auxiliar a tribo a suportar a desgraça com humildade e certa dignidade. Quando, no ano seguinte, se repetiram as adversidades e as desgraças do ano anterior, quando as terras da comunidade secaram e racharam sob a influência de uma seca impenitente, e os camundongos se reproduziram de modo apavorante, quando os solitários exorcismos e sacrifícios do conjurador da chuva não foram ouvidos nem obtiveram êxito, nem tampouco foram ouvidas as cerimônias públicas, os conjuntos de tambores, as procissões de todo o povo, e verificou-se com horror que o conjurador da chuva dessa vez não conseguia conjurar a chuva, e não foi coisa fácil para Servo vencer tudo isso, ele teve de exceder-se a si próprio para arcar com tanta responsabilidade, e conseguir impor-se ante o povo apavorado e em ebulição. Houve duas ou três semanas em que Servo ficou completamente sozinho, diante da comunidade em peso, diante da fome e do desespero, e ante a antiga crença popular de que só o holocausto do conjurador da chuva poderia aplacar as potências.
Servo venceu então pela passividade. Não mostrou resistência à ideia de ser sacrificado, oferecendo-se mesmo em holocausto. Além do mais, trabalhou com indescritível zelo e dedicação para minorar os sofrimentos de todos, descobrindo água, pressentindo uma fonte ou um arroio, impedindo que no auge da penúria fosse destruído todo o rebanho, e nesse período de enormes aflições ele se conservou ao lado da matriarca da aldeia, da bisavó que não conseguia conter seu desespero e desânimo, impedindo com seu apoio, conselhos, ameaças, feitiços e rezas, pelo exemplo e a intimidação, que ela sucumbisse e deixasse reinar a confusão. Pôde-se então constatar que, em épocas de inquietações e preocupações gerais, um homem é tanto mais apto a prestar auxílio quanto mais tiver posto sua vida e pensamento a serviço do espírito e acima da personalidade, e quanto mais souber respeitar, observar, venerar, servir e oferecer sacrifícios. Esses dois anos terríveis em que sua vida quase foi oferecida em holocausto serviram para trazer-lhe finalmente enorme consideração e confiança, não entre os irresponsáveis, mas entre os poucos que tinham alguma responsabilidade e podiam reconhecer o valor de um homem da sua espécie.
Por meio dessa e de outras provações sua vida foi sendo conduzida, até que ele chegou à idade madura, à força da vida. Havia ajudado a enterrar duas bisavós da tribo, perdera um lindo filhinho de seis anos, fora atacado por um lobo, vencera uma grave enfermidade sem auxílio alheio, sendo seu próprio médico. Sofrera fome e frio atrozes. Tudo isso marcara sua face e não menos sua alma. Tivera também ocasião de constatar que os homens que se dedicam ao espírito despertam nos outros uma estranha repulsa e antipatia, e que só são apreciados de longe, e lembrados em caso de necessidade, mas sem amor; não são considerados pelos outros seu igual, e, sendo possível, evitam-no. Também ficara sabendo por experiência própria que os doentes ou infelizes preferem as inovações mágicas e os exorcismos, tradicionais ou recém-inventados, a sábios conselhos; que o homem prefere ser atingido pela desgraça ou praticar penitência pública a transformar-se interiormente, ou mesmo a fazer um exame de consciência; que acredita mais facilmente em feitiços do que na razão, em exorcismos mais que na experiência: coisas essas que, conforme parece, nos milênios que decorreram desde então, não mudaram tanto como pretendem muitos tratados de História. Mas Servo aprendera também que um homem que procura decifrar os domínios do espírito não deve deixar de amar: deve observar sem orgulho os desejos e loucuras da humanidade, mas sem deixar-se dominar por eles; que do sábio ao charlatão, do sacerdote ao malandro, do irmão que presta auxílio ao vagabundo parasita, existe apenas um passo de distância, e que o povo, afinal, prefere pagar a um trapaceiro e deixar-se explorar por um propagandista de feira a aceitar de graça um auxílio altruísta. Os homens não gostam de pagar com confiança e amor, e sim com dinheiro e mercadoria. Enganam-se mutuamente e ficam à espera de ser enganados. É preciso aprender a considerar os homens seres fracos, egoístas e covardes, e a ver quão profundamente nós próprios participamos dessas más qualidades e instintos, sem no entanto deixar de crer e de alimentar com essa crença a própria alma; o homem também possui espírito e amor, nele habita algo que se contrapõe aos instintos e anseia por enobrecê-los. Mas tais pensamentos são já muito desconexos e sutis para que Servo os pudesse compreender. Pode-se dizer que ele estava a caminho de encontrá-los, que sua trajetória ia desembocar neles e passar por eles.
Ao mesmo tempo que percorria esse caminho, ansioso por pensamentos, mas vivendo muito mais pelos sentidos, pelo enfeitiçamento da lua, pelo aroma de uma erva, os sais de uma raiz, o sabor de uma casca de árvore, o cultivo de plantas medicinais, o preparo de unguentos, a integração nos fenômenos do tempo e da atmosfera, ele desenvolvia em si próprio muitas faculdades, e entre elas algumas que nós, hoje em dia, não possuímos mais e mal compreendemos. A mais importante delas era naturalmente a invocação da chuva. Havia frequentes ocasiões em que o céu se conservava severo, parecendo escarnecer cruelmente de seus esforços; no entanto Servo conseguiu centenas de vezes conjurar a chuva de diferentes maneiras. Mas no culto dos holocaustos, no rito das procissões, das invocações e das batidas dos tambores, ele não teria ousado modificar ou omitir absolutamente nada. Esse era apenas o lado oficial e público de sua atividade, a parte visível de seu cargo e de seu sacerdócio; tinha enorme beleza e causava grande fascínio assistir, por exemplo, ao espetáculo de uma noite de um dia de holocaustos e procissão, em que o céu cedia, o horizonte se enublava, o vento
cheirava a umidade e as primeiras gotas de chuva começavam a pingar. Mas era necessária a arte do conjurador da chuva para escolher bem o dia, para não desejar às cegas o impossível; podia-se implorar às potências, arremeter contra elas com pedidos, mas devia-se fazê-lo com senso e medida, com submissão à sua vontade. E mais ainda do que os belos e triunfais sucessos e realizações, aqueles rituais significavam para Servo outras vivências só dele conhecidas, e mesmo assim a medo, mais com os sentidos do que com o intelecto. Havia disposições do tempo, tensões da atmosfera e da temperatura, nuvens e ventos, cheiros diversos de água, terra e pó, ameaças e promessas, pressentimentos e premonições dos demônios do tempo, que Servo pressentia e sentia em sua pele, nos cabelos, em todas as manifestações dos sentidos, de modo que nada o surpreendia, e nada o podia desiludir; concentrava dentro de seu ser o tempo, vibrando em concordância com ele e trazendo-o consigo, de modo a poder dar ordens às nuvens e aos ventos: não por um ato de vontade arbitrário, mas por uma união, uma ligação que abolia por completo a diferença entre ele e o mundo, entre sua essência íntima e o universo exterior. Então ele ficava parado escutando, num enlevo; punha-se de cócoras, com todos os poros abertos, não só sentindo a vida dos ares e das nuvens em seu íntimo, como também dirigindo essa vida, produzindo-a, assim como podemos despertar e reproduzir em nosso íntimo uma frase musical que conhecemos bem. Então bastava que ele prendesse a respiração — e o vento ou o trovão cessavam; bastava que inclinasse a cabeça em sinal de aquiescência ou sacudisse negativamente a cabeça — e a chuva de granizo despencava ou deixava de cair; era suficiente que exprimisse em seu íntimo, com um sorriso, o equilíbrio das forças em luta — e nas alturas as rugas das nuvens se abriam, descobrindo o sutil e luminoso azul. Em períodos de puríssima concordância e harmonia anímica, ele trazia no seu íntimo o tempo dos próximos dias, com exatidão e sem perigo de erro, prevendo-o como se trouxesse no sangue a partitura inteira a ser tocada lá fora. Esses eram seus bons dias, os melhores, sua recompensa e seu enlevo.
Porém, quando se interrompia essa íntima ligação com o exterior, quando o tempo e o mundo se tornavam estranhos, incompreensíveis e imprevisíveis no interior do seu ser, a ordem se turbava e as correntes se interrompiam, e ele sentia que deixava de ser um bom conjurador da chuva; seu cargo e a responsabilidade pelo tempo e pela colheita lhe pareciam pesados e imerecidos. Durante tais períodos ele era um homem caseiro, obedecendo e auxiliando Ada, participando com ela dos deveres de uma dona de casa, fazendo brinquedos e instrumentos para as crianças, cozinhando remédios pelos arredores. Sentia necessidade de amor, e o desejo de se assemelhar o mais possível aos outros homens, adaptando-se por completo aos usos e costumes, e chegando até a escutar as enfadonhas conversas da mulher e das vizinhas sobre a vida, o estado de saúde e os haveres do próximo. Mas nos bons tempos ele quase não era visto em casa, ficava perambulando, pescando, caçando, procurando raízes, deitado na relva ou trepado em árvores, farejando, de ouvido atento, imitando vozes de animais; fazia fogueirinhas, e comparava as formas das nuvens de fumaça com as nuvens do céu, embebia a pele e os cabelos de névoa, chuva, ar, a luz do sol ou da lua, e além disso guardava também, como seu mestre e predecessor Túru, objetos que pareciam conter dentro de si o ser e as formas exteriores dos mais variados domínios da vida, e nos quais a sabedoria ou o capricho da natureza pareciam revelar uma pequena parte de suas regras de conduta e dos mistérios da criação, objetos que reuniam de forma simbólica coisas completamente diversas, como, por exemplo, nós de troncos e de galhos com restos humanos ou animalescos, seixos polidos pela água com veios semelhantes a madeira, formas animais petrificadas de períodos antediluvianos, sementes disformes ou gêmeas de frutos, pedras em forma de rim ou de coração. Decifrava os desenhos de uma folha, os lineamentos entrecruzados da cabeça de um cogumelo, pressentindo em tudo isso o mistério, o espírito, o futuro, mil possibilidades: magia dos símbolos, premonição de número e escrita, limitação do infinito e das formas variáveis dentro da simplicidade, do sistema, do conceito. Dentro dele residiam todas essas possibilidades de apreender o espírito, possibilidades sem nome, sim, mas não impossíveis ou fora de cogitação. Ainda no estágio de broto e de botão, mas essenciais para ele, possibilidades que lhe pertenciam e cresciam organicamente dentro dele. E se nós penetrássemos em milênios anteriores a esse conjurador da chuva e à sua época, a nosso ver primitiva, estamos certos de que, ao encontrar o homem, encontraríamos também o espírito, o qual não teve princípio, e sempre conteve em si a totalidade e a diversidade das coisas, de tudo aquilo que mais tarde ele venha a produzir.
Não fazia parte do destino do conjurador da chuva eternizar alguma premonição sua e apresentar provas concretas da sua veracidade, para ele quase dispensáveis. Ele não veio a ser um dos muitos inventores da escrita ou da geometria, nem da medicina ou da astronomia. Conservou-se apenas um elo desconhecido de um encadeamento, mas um elo indispensável como qualquer outro: transmitiu não só o que tinha aprendido como também os conhecimentos adquiridos e conquistados por ele próprio. Teve, por sua vez, alunos. Ensinou dois aprendizes, no decorrer dos anos, que se tornaram conjuradores da chuva, e um deles sucedeu-o nas suas funções.
Durante muitos anos dedicou-se às suas atividades e entregou-se às suas pesquisas, calmo e solitário, e quando pela primeira vez — isso se passou depois de uma época prolongada de pragas e de fome — um adolescente começou a visitá-lo, a observá-lo, a espreitá-lo, a venerá-lo e a persegui-lo, um menino que desejava tornar-se conjurador da chuva e mestre, ele sentiu, com uma estranha sensação de saudade no coração, que aquela importante vivência da sua juventude se repetia e se transformava; teve ao mesmo tempo, pela primeira vez, o sentimento corriqueiro e grave que a um só tempo angustia e desperta: a juventude passava, o meio-dia da vida já fora ultrapassado, e a flor se tornara fruto. E, o que ele nunca imaginaria que pudesse acontecer, comportou-se com o menino como o velho Túru se comportava com ele, e esse comportamento seco, reservado, desconfiado e hesitante foi uma coisa completamente natural e instintiva, não era uma imitação do falecido mestre, nem o resultado de considerações pedagógicas ou morais, como se fora necessário expor um adolescente a demoradas provas, para saber se suas intenções são sérias, e não lhe facilitar o conhecimento dos mistérios conferidos pela iniciação. Nada disso. Servo se comportou diante de seu aprendiz exatamente como qualquer pesquisador solitário, ao envelhecer, se comporta diante de seus admiradores e discípulos: confuso, tímido, reservado, evasivo, cheio de receio de ser perturbado em sua bela solidão e liberdade, em suas caminhadas errantes pelas selvas, suas solitárias caçadas e buscas de raridades, seus sonhos e espreitas; cheio de ciúmes de seus hábitos e preferências, segredos e meditações. Não abraçou o rapaz indeciso que se aproximava dele com respeitosa curiosidade, não o ajudou a vencer a indecisão nem o animou, e não considerou um prazer e uma recompensa, um reconhecimento ou um agradável sucesso o fato de o mundo enviar-lhe afinal um mensageiro e uma declaração de amor, de alguém dedicar-se a ele e sentir-se seu semelhante, sentindo como ele a vocação para servidor dos mistérios. Não; antes de mais nada, isso o aborreceu, parecendo-lhe um ataque aos seus direitos e hábitos, um assalto à sua independência, que só agora percebia quanto lhe era cara; revoltou-se, e começou a ganhar experiência em despistar e esconder-se, em apagar seus rastros, em desviar-se e escapar. Contudo sucedeu-lhe o mesmo que outrora a Túru. A conquista paciente e silenciosa do jovem aos poucos abrandou-lhe o coração, sua resistência foi cedendo pouco a pouco, até cessar por completo, e à medida que o jovem ganhava terreno ele ia lentamente ao seu encontro, concordava com seus desejos, aceitava suas demonstrações de interesse, passando a considerar o dever às vezes tão penoso de ensinar e ter alunos como uma coisa inevitável, um dom do destino, a vontade do espírito. Tinha de ir-se despedindo dos sonhos, do sentimento e do prazer das possibilidades ilimitadas, de um caleidoscópico futuro. Em lugar do sonho e da ilimitada evolução, da soma de toda a sabedoria, ali se encontrava o aluno, uma pequena realidade, próxima e exigente, um intruso e desmancha-prazeres, mas imperioso e inevitável, o único caminho para o verdadeiro futuro, o único dever, o mais importante, o único meio pelo qual a vida e as ações do conjurador da chuva, seu caráter, seus pensamentos e pressentimentos podiam evitar a morte, continuando a viver num novo botãozinho. Suspirando, rangendo os dentes e sorrindo, tomou-o a seu cargo.
E nessa importante esfera de suas funções, que requeria talvez a maior das responsabilidades — a transmissão do ensino tradicional e a educação de sucessores —, não faltaram ao conjurador amargas experiências e desilusões. O primeiro aprendiz que procurou ganhar suas graças e após larga espera e negativa o teve por mestre chamava-se Maro, e causou-lhe uma desilusão que lhe custou a esquecer. Era um menino submisso e adulador, e durante muito tempo fingiu prestar completa obediência, mas faltavam-lhe qualidades, principalmente a coragem, o que ele procurava ocultar. Servo, apesar de perceber esse fato, tomou-o por muito tempo como um resto de criancice, que desapareceria com o tempo. Mas não desapareceu. Faltava também completamente a esse discípulo o dom de entregar-se objetivamente e sem segundas intenções à observação, às atividades da sua profissão, aos pensamentos e pressentimentos. Era inteligente, possuía uma compreensão clara e rápida e aprendia com facilidade e segurança tudo o que se aprende sem devoção. Mas cada vez mais se evidenciava que ele tinha intenções e metas egoístas, era isso que o havia levado a querer aprender o ofício de conjurador da chuva. Antes de tudo queria que lhe dessem importância, queria representar um papel e impressionar, tinha a vaidade da pessoa talentosa, mas não escolhida. Aspirava aos aplausos, gabava-se, junto aos meninos da sua idade, dos primeiros conhecimentos e artes que adquiria — talvez o fizesse também por criancice, e podia ser que se corrigisse. Mas não só procurava aplausos, como aspirava também a exercer poder sobre os outros, e a obter vantagens; quando o mestre começou a perceber isso, assustou-se, e aos poucos seu coração se fechou para o adolescente. Este foi levado por duas ou três vezes a cometer graves faltas, após já estar há vários anos aprendendo com Servo. Por sua própria conta, sem o conhecimento nem a permissão de seu mestre, e em troca de presentes, foi induzido ora a ministrar remédios a uma criança doente, ora a fazer exorcismos em uma cabana contra a praga dos ratos, e quando, apesar das ameaças e promessas, foi apanhado praticando tais atos, o mestre o dispensou de seu ensino, contou à bisavó o que se passara e procurou apagar da memória esse rapaz mal-agradecido e inaproveitável.
Dois alunos que teve mais tarde, principalmente o segundo, seu filho Túru, compensaram-no dos trabalhos com o mau aluno. Por seu filho, o mais jovem e o último de seus aprendizes e alunos, ele tinha enorme amor, e acreditava que o menino poderia ultrapassá-lo, e era evidente ter retornado nele o espírito do avô. Servo teve a satisfação, que lhe era uma fonte de energias para a alma, de transmitir para o futuro a soma dos seus conhecimentos, de sua crença, e de saber que existia alguém, e seu filho, a quem podia cada dia que passava entregar as atividades de sua função, quando se tornavam pesadas demais para ele. Mas o primeiro aluno, que fora malsucedido, não saiu mais da sua vida e de seus pensamentos, tornou-se na aldeia um homem apreciadíssimo por muitas pessoas, e com certa influência, mas não gozava da consideração de todos; casara-se, era apreciado como uma espécie de charlatão e um sujeito gaiato, era até chefe dos tocadores de tambor no conjunto de tambores, e conservou-se ocultamente um inimigo do conjurador, que ele invejava e a quem prejudicou por diversas vezes, em coisas insignificantes e outras importantes. Servo nunca fora adepto de relações de amizade e de reuniões, tinha necessidade de solidão e liberdade, nunca se esforçara por angariar consideração ou amor, a não ser em menino, com o Mestre Túru. Mas agora sabia o que significava ter um inimigo visceral, e isso amargurou muitos dias de sua vida.
Maro pertencia àquela espécie de alunos talentosos que, apesar de seus dotes, são desagradáveis e incômodos aos professores, porque seu talento não provém de forças profundas e íntimas, com bases orgânicas, signo delicado e nobre de uma boa natureza, de um sangue sadio e de um caráter firme, mas tem algo de superficial, de casual, e mesmo de usurpado ou roubado. Um aluno de pouco caráter mas inteligentíssimo ou de imaginação brilhante traz com toda a certeza complicações ao professor: este tem de transmitir ao aluno os conhecimentos e o método tradicionais, tornando-o apto a colaborar na vida do espírito — e não pode deixar de sentir que seu dever mais alto é proteger esses conhecimentos e essa arte da avidez de pessoas dotadas apenas de talento; o professor não deve ser um servidor do aluno, mas ambos têm de ser servidores do espírito. Essa é a razão pela qual os professores sentem diante de certos talentos fulgurantes timidez e temor; esses alunos falseiam o sentido e o valor do trabalho do mestre. As exigências de um aluno de inteligência brilhante mas que não sabe ser um servidor significam no fundo um pecado contra a capacidade de servir, uma espécie de traição ao espírito. Conhecemos na História nações que passaram por períodos de distúrbios profundos da ordem espiritual, em que houve uma imensidade de indivíduos talentosos nos cargos de direção, nas comunidades, escolas, academias e estados, em que as variadas funções eram exercidas por pessoas talentosíssimas, que queriam governar, mas não sabiam servir. É certamente muito difícil reconhecer de pronto essa forma de talento, antes que o aluno se aproprie dos fundamentos de qualquer atividade do espírito, e em seguida, com a necessária energia, fazer o aluno retornar a atividades profanas. Servo também cometera erros, tivera paciência demais com o aprendiz Maro, confiara a um ambicioso e leviano muitos conhecimentos reservados aos adeptos, de que esse aluno não estava à altura. As consequências daí decorrentes para Servo foram mais funestas do que ele poderia imaginar.
Houve um ano — a barba de Servo já estava bem grisalha — em que a ordem reinante entre o céu e a terra parecia perturbada por demônios de força e malignidade fora do comum. Tais perturbações começaram no outono, com um aspecto de horror e majestade que encheu todas as almas de espanto, paralisando-as de medo. Anunciaram-se num espetáculo inédito do firmamento, logo após a época em que o dia e a noite têm a mesma duração, época sempre observada e vivida pelo conjurador com certa solenidade e devoção, com uma atenção especial. Certa tarde a atmosfera tornou-se rarefeita, ventava e fazia frio, o céu estava claro e transparente, com algumas nuvenzinhas inquietas, que pairavam em enorme altitude, retendo de modo inusitado a cor rosada do poente: ágeis flocos de luz, leves e esgarçados, no firmamento frio e lívido. Servo já vinha sentindo havia alguns dias alguma coisa mais forte e esquisita do que em geral se sentia todos os anos na época em que os dias se vão tornando mais curtos, uma atividade das potências no espaço celeste. A terra, as plantas e os animais se amedrontavam, havia uma inquietude nos ares, algo incerto, indeciso, temeroso, uma ansiosa espera em toda a natureza; eram também uma premonição essas nuvenzinhas cintilando largo tempo nessa tarde, num tremulante esvoaçar lá nas alturas, apesar de não soprar na terra vento algum: com sua rubra e suplicante luz, lutaram obstinadamente, confiantes, para não se apagar, e, após se ter extinto e esfriado o reflexo luminoso, tornaram-se de súbito invisíveis. Na aldeia estava tudo calmo, diante da cabana da velha bisavó os visitantes e as crianças que vinham ouvi-la já se tinham havia muito tempo dispersado, alguns meninos perseguiam-se e brigavam, e, fora isso, todos já estavam em seus casebres, e já tinham comido havia muito tempo. Muitos já dormiam, e só uma ou outra pessoa, além do conjurador, observava as nuvens rubras da tarde. Servo se pôs a passear de um lado para outro na hortinha nos fundos de seu casebre, perscrutando o tempo, com os nervos tensos, inquieto, e às vezes sentava-se para um breve descanso no toco de árvore entre as urtigas que servia para se rachar lenha. Ao se apagarem as últimas velas de nuvens no céu ainda claro, em que cintilavam os últimos reflexos esverdeados, as estrelas tornaram-se de súbito nítidas e visíveis, aumentando rapidamente em número e brilho. Onde havia pouco só se avistavam duas ou três havia já dez ou vinte. Muitas dentre as estrelas, seus grupos e famílias, eram conhecidas do conjurador, ele já as vira centenas de vezes, seu retorno imutável conferia certa calma, elas traziam consolo, apesar de se encontrarem distantes e frias nas alturas, sem irradiar calor; inspiravam confiança, dispostas em ordem, anunciando harmonia, prometendo eternidade. Aparentemente estranhas, distantes e adversas à vida terrena e humana, insensíveis ao calor humano, aos tremores, sofrimentos e êxtases dos homens, infinitamente superiores a eles, de uma superioridade quase escarninha, fidalgas e frias, majestosas e permanentes, as estrelas, todavia, estavam em relação conosco, talvez nos guiassem e governassem, e quando qualquer ramo do saber humano, qualquer propriedade espiritual, qualquer segurança e superioridade do espírito eram conquistados e conservados, brilhavam também quais estrelas frias e calmas, consolando com seu frio tremular, com um olhar eterno e levemente irônico. Era essa, por vezes, a impressão do conjurador, e apesar de não ter com as estrelas o contato íntimo e afetivo que mantinha com a lua, tão grande e próxima, esse imenso peixe encontrado no oceano celeste, ele as venerava, e estava ligado a elas por muitas crenças. Entregava-se à observação prolongada das estrelas, abrindo-se à sua influência, oferecendo seu calor, seus temores ao olhar frio e calmo dos astros, o que era para ele com frequência um banho, uma bebida salutar.
Nesse dia elas fitavam como sempre, porém ainda mais claras, entalhadas na atmosfera tensa e rarefeita, e todavia o conjurador não encontrava dentro de si a calma necessária para entregar-se a elas; vinda de desconhecidas regiões, uma potência estranha penetrava nele, martirizando-lhe os poros, embebendo-se em seus olhos, com uma ação silenciosa e persistente, um fluxo, um tremor premonitório. Ao lado, na cabana, a luz quente e fraca do fogo do lar tinha cintilações rubras e turvas; fluía ali uma vida pequenina e cálida, vibravam apelos, risadas, bocejos, havia um cheiro humano, de pele quente, de maternidade e de sono infantil, que parecia, com sua presença inocente, tornar ainda mais profunda a noite que caía, afastando as estrelas para bem longe, a distâncias e alturas inconcebíveis.
E então, enquanto Servo, na cabana, ouvia a voz de Ada, num melódico e grave sussurro, uma melopeia, acalmando uma das crianças, começou no firmamento a catástrofe cuja memória se conservou por muitos anos na aldeia. Na trama silenciosa e clara das estrelas, aqui e acolá, viam-se cintilações e bruxuleios, como se os fios em geral invisíveis dessa trama estremecessem; algumas estrelas isoladas tombaram em diagonal pelo espaço, como pedras atiradas por alguém, fulgurando e se apagando de súbito, uma aqui, duas ali, acolá um punhado de estrelas, e mal o olhar se desviava da primeira estrela cadente que se extinguia, mal o coração, paralisado por essa visão, principiava de novo a bater, outras já vinham tombando pelo céu, em diagonais levemente curvas; como luzeiros arremessados com fúria, despencavam em nuvens, às centenas, em grupos incontáveis, através da noite calada, como levadas por um tufão silencioso, ou como se um outono universal as arrancasse quais folhas secas da árvore do céu, atirando-as em silêncio para o nada. Como folhas secas, ou como esvoaçantes flocos de neve, elas perpassavam pelo espaço aos milhares, num silêncio tenebroso, tombando e desaparecendo por detrás das montanhas a sudeste cobertas de florestas, onde desde épocas imemoriais nunca uma estrela desaparecera: tombavam em qualquer parte no vazio.
Com o coração paralisado, os olhos cintilando, Servo ali ficou, a cabeça enterrada entre os ombros, com um olhar insaciável de horror, fitando o céu transformado e enfeitiçado, sem acreditar no que via, e todavia consciente daquele terror. Como todos os que assistiram a esse espetáculo noturno, ele julgou ver as conhecidas estrelas vacilarem, arrojando-se e tombando, e esperava ver em breve negra e vazia a abóbada celeste, caso a terra não a devorasse antes disso. Após uns instantes percebeu, no entanto, aquilo que os outros não percebiam; as conhecidas estrelas continuavam aqui e acolá, por toda parte. A dispersão de estrelas não assumia seu brutal aspecto entre as antigas e conhecidas estrelas, mas no espaço intermediário entre o solo e o céu, e esses novos luzeiros, que tombavam ou eram atirados com um fulgor rápido e passageiro, ardiam com um colorido diverso das antigas e verdadeiras estrelas. Isso o acalmou e o ajudou a dominar-se, mas mesmo que fossem novas e passageiras essas outras estrelas que enchiam os ares com sua chuva, de qualquer modo o que acontecia era terrível, maléfico e desordenado, e profundos suspiros subiram à garganta ressequida de Servo. Pôs-se a olhar para a terra, a escutar, para verificar se o espetáculo fantasmagórico só a ele se mostrava, ou os outros também o viam. Em breve escutou rumores vindos de outras cabanas, gemidos, gritos e exclamações de pavor; outras pessoas também haviam visto e dado o alarme, despertando os que nada haviam percebido ou ainda dormiam, e num instante o pavor e o pânico poderiam assaltar a aldeia inteira. Suspirando profundamente, Servo se resolveu. Ele, em primeiro lugar, era atingido por essa desgraça, como conjurador; ele, que de certo modo era responsável pela ordem no céu e nos ares. Constantemente previra ou pressentira grandes catástrofes: enchentes, chuvas de granizo, tempestades, sempre preparando e aconselhando as mães e os anciãos, impedindo que acontecesse um desastre, colocando a serviço deles seus conhecimentos, sua coragem e confiança, servindo de intermediário entre a aldeia e o desespero. Por que, desta vez, ele não previra e organizara as coisas? Por que não falara a ninguém sobre o pressentimento obscuro e premonitório que o assaltara?
Ergueu a esteira da entrada da cabana e chamou baixinho a mulher pelo nome. Ela veio, com o filho mais moço ao peito, e ele tomou-lhe dos braços a criancinha e a colocou sobre a palha, deu a mão à mulher, pôs um dedo nos lábios, ordenando silêncio, conduziu-a para fora da cabana e viu em breve seu rosto paciente e calmo se transformar num esgar de medo e de susto.
— As crianças devem continuar dormindo, não precisam ver nada, está ouvindo? — sussurrou ele, incisivo. — Não deixe nenhuma delas sair, nem mesmo o Túru. E você também fique aqui dentro.
Hesitante, incerto, não sabia bem o que dizer, nem o que devia revelar, e acrescentou então com energia:
— Nada acontecerá a você e às crianças.
Ela acreditou nele, apesar de sua fisionomia e seus sentimentos custarem a refazer-se do pavor que sentira.
— O que é isso? — perguntou enquanto seu olhar, do marido, se dirigia de novo ao céu.
— É coisa muito ruim?
— É ruim — disse ele com voz suave —, creio mesmo que seja muito ruim. Mas não vai atingir nem você nem os pequenos. Fique na cabana, feche bem a esteira. Eu tenho de ir falar com o povo. Vá para dentro, Ada.
Empurrou-a pelo buraco de entrada da cabana, fechou com cuidado a esteira, conservou-se ainda durante uns instantes de rosto voltado para a interminável chuva de estrelas, em seguida inclinou a cabeça, suspirou de novo com o coração angustiado e se encaminhou depressa pela noite adentro na direção da aldeia, rumo à cabana da matriarca.
Ali se encontrava reunida metade da aldeia, num surdo murmúrio, num alvoroço que o medo paralisava e continha a meio, cheia de espanto e de desespero. Algumas mulheres e homens se entregavam a um impulso de terror e destruição, com uma espécie de ira e volúpia, e se mantinham rígidos, como em êxtase, ou agitavam os membros descontroladamente; uma mulher tinha a boca cheia de espuma, dançava sozinha uma dança delirante e ao mesmo tempo obscena, arrancando aos punhados os longos cabelos. Servo percebeu que tudo se preparava, estavam quase todos meio entontecidos, enfeitiçados e enlouquecidos pelas estrelas cadentes, e talvez isso degenerasse em uma orgia de loucura, ira e autodestruição; já era mais do que tempo de reunir os poucos indivíduos de coragem e bom senso e incutir-lhes ânimo. A velhíssima bisavó estava calma, julgava próximo o fim de tudo, mas não se revoltava, e opunha ao destino uma face enérgica, dura, quase sarcástica em sua rude aspereza. Servo conseguiu que ela o escutasse. Procurou demonstrar-lhe que as estrelas permanentes continuavam a existir, mas ela não conseguiu verificá-lo, seja por terem seus olhos perdido a força, seja por serem suas ideias a respeito das estrelas e suas relações com os homens muito diversas das do conjurador para que os dois se pudessem entender. Ela sacudiu a cabeça, conservando seu corajoso sorriso escarninho, e quando Servo lhe prometeu que não permitiria que as pessoas, delirantes de medo, se entregassem aos demônios, ela concordou imediatamente. Em torno dela e do conjurador da chuva reuniu-se um pequeno número de pessoas amedrontadas, mas não enlouquecidas, que se prontificaram a deixar-se guiar.
Um momento antes do seu encontro, Servo ainda tinha esperanças de poder dominar o pânico por meio do exemplo, da razão, com palavras, explicações e conselhos. Mas, desde a rápida conversa com a bisavó, percebeu que já era tarde demais para isso. Esperava que os outros pudessem compreender suas próprias vivências e pretendia compartilhar com eles suas ideias, alertando-os para o fato de não serem as próprias estrelas, ou não todas, que tombavam e eram carregadas pela tempestade cósmica, fazendo-os assim passar do estado de passivo pavor e espanto para uma observação ativa, conseguindo vencer a comoção. Mas logo percebeu que a muito poucos ele conseguiria influenciar na aldeia, e, ainda que o fizesse, os demais seriam tomados por completa loucura. Não, nesse caso, como acontecia com frequência, nada se conseguiria com a razão e com palavras sensatas. Felizmente havia outros meios. Se era impossível dissipar esse medo mortal por meio da lógica, podia-se dirigi-lo, organizá-lo, emprestar-lhe forma e fisionomia, transformando aquele insensato conglomerado de loucos em uma unidade compacta, em um coro as vozes individuais descontroladas. Incontinênti, Servo passou à ação, empregando o meio adequado. Postou-se diante da multidão e gritou as conhecidas rezas com que em geral se abriam os cultos públicos de finados e de penitência, as lamentações fúnebres devidas a uma bisavó ou às imolações e solenidades de penitência em casos de perigo público, como as epidemias e enchentes. Gritou as palavras em compasso, marcando os tempos com palmas, e, à medida que gritava e batia as mãos no mesmo compasso, inclinava-se quase até o solo, erguia-se de novo, inclinava-se, tornava a erguer-se; dez ou vinte pessoas já acompanhavam seus movimentos, a encanecida matriarca da aldeia ergueu-se, cantando uma melopeia rítmica, marcando os movimentos rituais com leves curvaturas de busto. Os que vinham das outras cabanas participavam de imediato da cerimônia, integrando-se ao seu compasso e espírito, e alguns, completamente enlouquecidos, perdiam em breve as forças e jaziam inertes no solo, ou eram domados e conduzidos pela melopeia do coro e o ritmo das curvaturas do cerimonial religioso. Ele vencera. Em vez de uma horda desesperada de malucos, ali estava uma multidão de devotos, prontos a oferecer sacrifícios e penitências, que se sentiam aliviados e com o coração alentado, por não necessitar encerrar dentro de si o medo da morte e o pavor, ou de os afastar aos berros, cada um por si, mas sim organizados em um coro comum, em compasso, numa cerimônia de esconjuro. Muitas potências ocultas estão ativas em uma cerimônia dessas, e seu maior consolo é a uniformidade, que duplica o sentimento coletivo, e seu infalível remédio são a medida e a ordem, o ritmo e a música.
O firmamento noturno continuava coberto de meteoros, qual uma cascata de gotas de luz despencando em silêncio que continuou por duas horas ainda a gotejar seus enormes pingos rubros de fogo enquanto o pavor da aldeia se transformava em resignação e devoção, em arrependimento; o medo e a fraqueza dos homens eram agora ordem e harmonia cultural que se contrapunham à desordem celeste. Antes mesmo que a chuva de estrelas principiasse a amainar e escassear, o milagre se realizara, irradiando sua virtude benfazeja, e quando o céu se foi aos poucos acalmando e normalizando os penitentes exaustos tiveram uma sensação de alívio, julgando ter com suas práticas aplacado as potências e normalizado a ordem celeste.
Essa noite de pavor não foi esquecida, e durante todo o outono e o inverno falou-se nela, mas em breve não o faziam mais aos sussurros e esconjurando, mas em voz alta e com a satisfação com que se comenta uma desgraça que se venceu, um perigo combatido com sucesso. Deleitavam-se ao descrever particularidades, cada um se havia surpreendido à sua maneira com aquele caso nunca visto, cada um pretendia havê-lo visto em primeiro lugar, faziam troça de certas pessoas excessivamente medrosas e fracas, e durante largo tempo reinou na aldeia certa excitação por haverem visto uma coisa grandiosa, um fato importante!
Servo não participou desse estado de ânimo, nem do gradual apagar-se, do esquecimento daquele grande acontecimento. Para ele, esse fenômeno apavorante tinha sido um aviso inesquecível, era um espinho que não cessava de martirizar, e apesar de se ter amainado por meio de procissões, rezas e penitências, a seu ver não havia terminado nem aplacado. Pelo contrário, com o decorrer do tempo, adquiriu para ele maior significado, porque seu sentido se ia esclarecendo, e Servo se ia aprofundando na sua decifração. Para ele, o fato em si, esse estranho fenômeno natural, já representava um portentoso e dificílimo problema, com muitas perspectivas: aqueles que haviam assistido a tal espetáculo poderiam passar a vida toda a refletir sobre ele. Uma só pessoa na aldeia poderia ter observado esse fenômeno com uma disposição e um olhar semelhantes ao seu, e era seu próprio filho e discípulo Túru, e essa seria a única testemunha válida para Servo, quanto a observações e correções. Mas ele não quis interromper o sono do filho, e quanto mais refletia sobre o motivo que o levara a isso, a razão pela qual renunciara, durante aquele acontecimento inédito, à única testemunha e ao único observador sério, tanto mais se fortificava sua crença de que havia agido de modo correto e seguido o aviso de um sábio pressentimento. Quisera preservar os seus dessa visão, e também seu aprendiz e colega, especialmente este último, porque a ninguém Servo era tão dedicado quanto a ele. Por essa razão lhe ocultara a chuva meteórica, subtraindo-o à sua visão, em primeiro lugar, por acreditar nos bons espíritos protetores do sono, principalmente os da juventude, e além disso, se a memória não lhe falhava, desde aquele instante, logo no início dos sinais celestes, ele pensara menos em um perigo momentâneo para todos do que numa premonição, num aviso sinistro para o futuro, e que dizia muito mais a ele, o conjurador, do que a todos os outros. Qualquer coisa se preparava, um perigo e uma ameaça vindos da esfera a que suas funções estavam ligadas, e, sob qualquer forma que se apresentassem, antes de mais nada diziam respeito a ele. Contrapor-se a esse perigo com espírito vigilante e decidido, preparar-se intimamente, aceitá-lo, sem se deixar diminuir ou degradar, foram o aviso e a decisão que ele tomou daquele importante presságio. Seu destino futuro requeria um homem amadurecido e corajoso para enfrentá-lo, por isso não teria sido conveniente imiscuir seu filho nele, permitir que participasse dele pessoalmente, ou como confidente apenas, pois, apesar da boa opinião que tinha a seu respeito, não se podia saber com segurança se alguém tão jovem e inexperiente: estaria à altura de suportá-lo.
Seu filho Túru, é claro, ficou aborrecidíssimo por ter perdido aquele espetáculo. Qualquer que fosse a explicação que se lhe desse, fora uma coisa fabulosa, e talvez em todo o resto de sua vida nunca mais se apresentasse um fenômeno assim, ele perdera a ocasião de assistir e participar de um milagre cósmico e durante muito tempo ficou amuado com seu pai por isso. Esse amuo passou, e o velho o recompensou com carinhos e atenções redobrados, ao passo que o introduzia cada vez mais nas funções de seu cargo, e era visível que, prevendo acontecimentos futuros, se esforçava por preparar Túru do modo mais perfeito possível para ser seu sucessor. Raras vezes falava com ele daquela chuva meteórica, mas com tanto mais entusiasmo lhe transmitia seus próprios segredos, suas práticas, seu saber e suas pesquisas, fazendo-se acompanhar por ele em suas excursões, suas experiências e investigações da natureza em que até então nunca permitira que outros tomassem parte.
O inverno chegou e se retirou, um inverno úmido e brando. Não caíram mais estrelas nem se deu nenhum fato importante ou fora do comum, a aldeia se acalmara, os caçadores iam à busca de caça, e das pontas dos esteios sobre as cabanas pendiam por toda parte montes de peles de animais, enregeladas e rígidas, que em dias frios e ventosos produziam com suas batidas um ruído característico. Sobre longas toras lisas, preparadas para esse fim, traziam da mata os montes de lenha, fazendo-os deslizar sobre a neve. Justamente durante o curto período de congelamento morreu uma mulher idosa na aldeia, e não foi possível enterrá-la logo; durante vários dias, até que o gelo do solo começasse a derreter, o cadáver congelado ficou acocorado ao lado da porta da cabana.
Só na primavera é que as sinistras previsões do conjurador se confirmaram em parte. Foi uma primavera péssima, traída pela lua, uma primavera melancólica, sem entusiasmo e sem vida, e a lua esteve sempre atrasada, nunca se apresentavam juntos seus diferentes sinais, necessários para determinar o dia da semeadura; as flores da selva floresciam sem viço, e os botões ainda fechados pendiam mortos das hastes. Servo ficou preocupadíssimo, sem o dar a perceber, e só Ada e principalmente Túru viam como ele se consumia. Não só praticava os esconjuros usuais como também realizava sacrifícios particulares, pessoais, preparava para os demônios papas e infusões aromáticas e afrodisíacas, cortou a barba e queimou os pelos na noite de lua nova, misturados com resina e cascas úmidas de árvore, o que provocava densa fumaceira. Evitou pelo mais longo tempo possível as cerimônias públicas, os sacrifícios comunitários, as procissões, o conjunto de tambores, com o propósito de concentrar as preocupações com o tempo maldito dessa péssima primavera. De qualquer modo, quando o prazo usual da semeadura se atrasara bastante, ele teve de participá-lo à bisavó; e eis que deparou também com desgraças e repulsa. A velha matriarca, boa amiga sua e que lhe dedicava um carinho quase maternal, não o pôde receber, pois se sentia indisposta, estava de cama, e passara à irmã todas as suas funções, e essa irmã não simpatizava com o conjurador, não tinha o caráter severo e franco da irmã mais velha, gostava de distrações e de folguedos, inclinação essa que lhe fora inculcada por Maro, o charlatão e tocador de tambor, que era hábil em preparar-lhe diversões e em bajulá-la, e Maro era inimigo de Servo. Logo após a primeira entrevista, Servo pressentiu essa frieza e antipatia, apesar de ela não o contradizer com uma só palavra. Suas declarações e seus conselhos, especialmente tendo em vista protelar a semeadura e a realização de sacrifícios e procissões, foram ouvidos e aceitos, mas a matriarca o recebera e tratara com frieza e como a um subordinado, e o desejo que Servo manifestou de ver a bisavó enferma ou de lhe preparar remédios foi recusado terminantemente. Voltou dessa conversa confuso, sentindo-se abatido e com um gosto desagradável na boca. Durante metade do mês se esforçou à sua moda para preparar condições de tempo que permitissem a semeadura. Mas as condições atmosféricas, que tantas vezes vibravam em uníssono com suas disposições íntimas, persistiram em seu aspecto escarninho e desfavorável, e nem feitiços nem oferendas obtiveram êxito. Nenhum aborrecimento foi poupado ao conjurador, ele teve de se dirigir de novo à irmã da bisavó, e dessa vez para implorar paciência e protelação; e notou imediatamente que ela devia ter falado com Maro, aquele farsante, porque ao conversarem sobre a necessidade de determinar a data da semeadura, ou da organização de cerimônias de súplicas, a velha quis mostrar seus conhecimentos e empregou algumas expressões que só podia ter ouvido de Maro, o antigo aprendiz de conjurador. Servo pediu um adiamento de três dias, e a constelação se apresentou sob novo aspecto, e mais propícia, e ele marcou então a semeadura para o primeiro dia da terceira fase da lua. A matriarca se conformou em pronunciar a fórmula ritual apropriada à ocasião; essa decisão foi participada à aldeia, e todos se prepararam para a festa da semeadura. E então, quando por algum tempo tudo parecia de novo em ordem, os demônios manifestaram novamente a sua inveja. Justamente um dia antes da festa da semeadura, tão desejada e já preparada, a velha bisavó morreu, a festa teve de ser adiada, e em lugar dela foi necessário anunciar e preparar o enterro. Foi uma festa magnífica: atrás da nova matriarca da aldeia, de sua irmã e suas filhas, vinha o conjurador da chuva, em trajes de grande ornato das grandes procissões propiciatórias, a cabeça coberta com o chapéu de pele de raposa, alto e pontudo; era assistido por seu filho Túru, que batia a matraca de dois sons. Foram prestadas muitas honras à falecida e à sua irmã, a nova matriarca. Maro, com os tocadores de tambor guiados por ele, pôs-se em evidência, com o agrado e a consideração de todos. A aldeia chorou e festejou, carpiu e divertiu-se, houve música de tambores e sacrifícios, foi um belo dia para todos, mas a semeadura foi novamente adiada. Servo mostrava-se digno e tranquilo, mas estava preocupadíssimo; tinha a impressão de que enterrava com a bisavó os tempos felizes de sua vida.
Logo depois, sob o forte desejo da nova avó, realizou-se com a mesma pompa a semeadura. A procissão percorreu solenemente os campos, a matriarca espalhou solenemente a primeira mancheia de sementes nas terras da comunidade, ladeada por suas irmãs, trazendo cada uma delas uma sacola cheia de grãos de onde a matriarca tirava as sementes. Servo respirou quando a cerimônia chegou ao fim.
Mas o fruto semeado com tamanha solenidade não traria alegrias nem colheita; esse ano não trouxe bênçãos. Principiando com uma reincidência do inverno e do gelo, o tempo, durante a primavera e o verão desse ano, trouxe toda espécie de malefícios e adversidades, e no verão, quando afinal uma vegetação rala cobriu os campos, sobreveio o último e o pior dos golpes, uma seca incrível, como não houvera desde tempos imemoriais. Semanas a fio o sol fervia na névoa esbranquiçada da canícula, os riachos secaram, o tanque da aldeia transformou-se num pântano imundo, paraíso das libélulas e de uma criação imensa de pernilongos; na terra ressecada abriam-se profundas fendas, e podiam-se observar as plantações que praguejavam e secavam. Por vezes as nuvens se acumulavam, mas eram tempestades secas, e se acaso caíam uns pingos de chuva seguia-os durante dias e dias um vento leste que tudo ressecava, e às vezes um raio tombava em árvores altas, queimando rapidamente suas copas quase secas.
— Túru — disse um dia Servo ao filho —, isso não vai terminar bem, todos os demônios estão contra nós. Começou com a chuva de estrelas. Acho que isso vai me custar a vida. Preste atenção: se eu for sacrificado, no mesmo instante tome o meu lugar, e a primeira coisa que você deve exigir é que queimem meu corpo e espalhem suas cinzas nos campos. Vocês vão ter um inverno de grande fome. Mas depois os malefícios vão cessar. Você tem de tomar cuidado para que ninguém se aproprie da colheita da comunidade, sob pena de morte. O ano seguinte será melhor, e todos dirão: que bom, temos agora um novo conjurador da chuva, um conjurador jovem!
Na aldeia reinava o desespero. Maro açulava as paixões, e não raro ouviam-se ameaças e esconjuros dirigidos ao conjurador. Ada adoeceu e ficou de cama atacada de vômitos e febre. As procissões, os sacrifícios, os longos e impressionantes conjuntos de tambores não obtinham mais resultado algum. Servo os dirigia, pois isso fazia parte de seu cargo, mas quando o povo se espalhava ele permanecia sozinho; todos o evitavam. Ele sabia o que era necessário fazer e também sabia que Maro já exigira da avó o seu sacrifício. Para salvaguardar sua honra e seu filho, ele deu o último passo: vestiu Túru com os trajes de grande ornato, levou-o à avó, recomendou-o como seu sucessor e demitiu-se de seu cargo, oferecendo-se em holocausto. A velha o fitou durante algum tempo com olhar curioso e inquiridor, depois inclinou a cabeça, concordando.
O holocausto realizou-se nesse mesmo dia. Toda a aldeia teria comparecido, se muitas pessoas não estivessem com disenteria. Ada também estava gravemente enferma. Túru, com seus ornatos e o chapéu alto de pele de raposa, quase teve uma insolação. Todas as pessoas importantes e os veneráveis que não estavam doentes estiveram presentes, a avó com duas irmãs, os anciãos e Maro, o dirigente do conjunto de tambores. Atrás deles seguia em confusão o povo. Ninguém dirigiu ofensas ao conjurador, tudo decorreu em silêncio, com um sentimento de opressão. Dirigiram-se à mata e procuraram uma extensa clareira determinada pelo próprio Servo para o lugar da cerimônia. Quase todos os homens traziam consigo machados de pedra para ajudar a rachar a lenha da fogueira. Ao chegarem à clareira, deixaram o conjurador no centro, formaram um pequeno circulo em seu redor, e bem mais afastada ficou a multidão, também em círculo. Como todos conservassem um silêncio indeciso e embaraçado, o próprio conjurador da chuva tomou a palavra.
— Eu fui o conjurador da chuva de vós — disse ele —, fiz o meu serviço por muitos anos o melhor que pude. Agora os demônios estão contra mim, não tenho mais sorte em nada que faço. Foi por isso que me ofereci em holocausto. Isso aplaca os demônios. Meu filho Túru vai ser o novo conjurador da chuva. Agora matem-me, e depois que eu estiver morto façam tudo o que meu filho determinar. Adeus! Quem quer me matar? Eu recomendo a vocês que seja Maro, o tocador de tambor; ele é a pessoa própria para isso.
Calou-se, e ninguém se mexeu. Túru, escarlate sob o pesado chapéu de pele, tinha um olhar de angústia, e a boca de seu pai se crispou num esgar escarninho. Finalmente a avó bateu com o pé no chão, enfurecida, fez um aceno a Maro e gritou-lhe:
— Avance! Pegue o machado e faça a sua obrigação!
Maro, com o machado na mão, postou-se defronte de seu antigo mestre, por quem sentia agora mais ódio do que nunca; o traço de ironia dessa boca velha e calada lhe causava um atroz sofrimento. Ergueu o machado, balanceou-o sobre a própria cabeça e, mantendo-o dirigido ao alvo, oscilante, olhou fixamente para o rosto da vítima e esperou que ela fechasse os olhos. Mas foi o que Servo não fez; conservou os olhos abertos com firmeza e dirigiu um olhar quase inexpressivo ao homem armado com o machado — mas, tanto quanto se podia notar, esse olhar tinha ressaibos de compaixão e ironia.
Furioso, Maro atirou para longe o machado.
— Isso eu não faço — murmurou, penetrando à força no círculo dos veneráveis e desaparecendo na multidão.
Algumas pessoas deram umas risadinhas. A avó ficara pálida de raiva de Maro, aquele homem covarde e inútil, e também do altivo conjurador da chuva. Fez um aceno a um dos anciãos, um homem respeitável e calmo que, apoiado ao seu machado, parecia envergonhar-se dessa cena desagradável. Ele se adiantou, fez um leve e amável aceno de cabeça à vítima, pois os dois se conheciam desde os tempos de criança, e então a vítima fechou de bom grado os olhos, cerrou-os com força e inclinou um pouco a cabeça. O velho atingiu-o com um golpe de machado, e ele tombou. Túru, o novo conjurador da chuva, não pôde pronunciar uma só palavra; ordenou com gestos o que era necessário fazer, e em breve o montão de lenha estava pronto, e o morto foi estendido em cima. O solene ritual de atiçar o fogo com os dois paus consagrados foi o primeiro ato de Túru no exercício de suas funções.
Extraído do livro "O jogo das contas de vidro", de Hermann Hesse (1943).