Tem tanta coisa que compõe uma ilha. Além de todos aqueles bilhões de grãos de areia tem a vegetação, juncais, mata de restinga, manguezais e os clássicos coqueiros (inevitável pensar numa ilha sem visualizar um ou dois coqueiros); É claro, tem a fauna, formada por toda sorte de aves marinhas e pequenos crustáceos, sem mencionar os possíveis primatas que vivem na área mais profunda e densa da ilha.
Pensa nas formigas, mosquitos, nas aranhas, moluscos, pólipos e outras criaturas que também vivem nessa ilha. Tenho visto muitas ilhas e elas todas apresentam basicamente a mesma composição. Nas áreas povoadas, porém, é que elas diferem. Nas zonas customizáveis. Toda ilha, sem exceção, possui itens que outra ilha nem sonha que possa existir. É o que as torna ilhas, eu acho. São coisas especiais que levaram para o coração dessa porção de terra, coisas mágicas ou terríveis. Ou ambas. Mais comumente, ambas.
Cada ilha experimenta uma saudade, uma faceirice, um prazer e um receio. Como as mesas de um restaurante que são feitas da mesma madeira, possuem o mesmo tipo de toalha, o mesmo número de guardanapos, palitos, saleiros, talheres; mas que são ocupadas por pessoas diferentes.
Eu fiz toda essa introdução bizarra por que eu tava com vontade de falar sobre umas ilhas que visito com freqüência (com trema mesmo, e daí?). Em uma delas, que eu conheço há muitos anos, tem uma estrada de ferro por onde passa o "trem das estrelinhas". É uma Maria Fumaça que passa de madrugada na frente de uma casa, onde mora uma guriazinha que levanta da cama só para espiar as faíscas brilhantes (estrelinhas) que saem voando de dentro do vagão da fornalha e contrastam com o escuro. Apenas faíscas, sabe. Estrelinhas.
Acontece é que essa tal ilha já passou por muita tormenta e erupção vulcânica pra lembrar desse trem e dessa guriazinha. Tá tudo lá, mas meio gasto, sabe como é? Ia ser muito tri se as gaivotas barulhentas e famintas e vulgares e irritantes parassem só um pouco de fazer algazarra na praia e fossem dar mais uma olhada nas estrelinhas. Só pra ver se recuperam alguma voz antiga, ou se ganham um canto mais suave.
A ilha do trem é um lugar fantástico. Acolhedor, generoso e compreensivo. A melhor ilha que eu conheço. Por isso eu às vezes tento chegar até as estrelinhas voadoras, isso torna o dia mais brilhante e cala o bico das gaivotas. Mesmo que ela esteja por demais atraída pelos gritos de fome das aves, eu insisto naquela memória tão delicada e bonita. Pode ser esforço em vão, mas é o que se faz quando gostamos de uma ilha: a gente insiste. Eu já fiz tanta coisa má ali que fico com essa vontade de tornar as coisas mais limpas e leves.
Outra ilha que eu costumo visitar é bem grande, com praias muito extensas e uma floresta extremamente densa. Tem áreas em que chove o tempo todo, dá pra ver de cima de algum morro aquelas nuvens esparsas, há quilômetros de distância, em constante precipitação. Tem áreas com solzinho ameno. Áreas com sol de rachar. Regiões escuras habitadas por seres agressivos e aviários naturais carregados de pássaros canoros raros. Existem lagoas pra nadar, praia boa de correr, rios internos muito calmos onde se pode até remar caso dê vontade. Tem amoreira, laranjeira, bergamoteira, mamoeiro, bananeira e goiabeira. Já foi um lugar enfadonho e meio esquisito, assustador, revoltante, quando ainda era uma ilha velha. Agora não. Tem limo sobre os troncos das árvores. Eu curto ir lá. Tardes inteiras de silêncio. Um silêncio intenso, muito agradável, interrompido apenas por latidos distantes e esporádicos, o arrulhar de alguma pomba. Essa ilha sabe para onde foram os vaga-lumes, e sabe onde ir procurá-los.
Tem uma outra ilha por onde eu curto dar umas voltas. A praia é formada por pedrinhas em vez da areia clássica. Tem flores silvestres de alma simples por toda parte, abelhas em um interminável processo de polinização, passarinhos discretos que voam muito alto. Noites de luar impressionantes, dias claros e quentes, chuvas boas de pegar, dias frios mas delicados. Não faz muito que eu rodo por ali, mas é como se eu sempre estivesse lá, desde antes de nascer, talvez.
Ilha com morros altos e cachoeiras, grutas, florestas do tipo Senhor dos Anéis e mangues efervescendo de vida. A cada dia eu descubro um motivo novo pra ficar voltando lá.
Essas que eu citei são só algumas, tem inúmeras mais. Umas eu nem pilho muito, só passo perto por obrigação. Tem umas que são sinistras, no pior sentido da expressão. Mas acho que é só por que ventou muito, choveu demais, fez muito frio, muitos dias escuros e tristes que calam os sons delicados dos seres que se escondem com medo e nunca mais aparecem.
Tem ilhas que não visito há muito tempo. Saudades de muitas. Uma delas eu não visito nunca mais. O mar já recobriu toda a sua extensão (nada mais justo e natural, acontece em algum momento com todas), só eu sei as impressões e lembranças que ela me causou.
Tu também deve conhecer algumas ilhas assim. Dessas que se esquecem de vez em quando, mas sem perder a doçura. Dessas que não esquecem. Dessas ilhas que nem existem há tempo o bastante pra ter problemas de memória. E dessas que se esquecem de vez e se tornam vítimas ou perseguidoras, confusas e para sempre perdidas.
A moral é essas ilhas todas manterem limpos seus itens especiais. Aqueles que só elas têm. Que as caracterizam como ilhas. Muito além de macaco, gaivota e caranguejo, elas são donas de lembranças próprias que as tornam o que são. Lembrem das tardes de silêncio; lembrem do trem das estrelinhas.