Oh, que alegria extrema
Que avidez em usar o ar que respiramos,
a boca, o olho, a mão.
Que ânsia penetrante
de nos gastarmos totalmente
em uma única explosão de riso.
Oh, esta morte insolente,
afrontante que nos assassina de longe,
com o prazer que temos em morrer
por uma xícara de chá...
por uma leve carícia.
José Gorostiza
Seje minha namorada
Nós dois embaixo do mesmo chapéu, comendo salada de restaurante chinês, desenhando haicai na calçada, assaltando caixa eletrônico, praticando tiro no balde e no bidê, fazendo bungee jumping do alto da Usina do Gasômetro, sem corda, sem rede, sem colchão, sem piscina, sem medo, sem pressa, sem vontade de ir embora. Eu não quero ir embora.
Quis Ir Para Bem Longe
Quis ir pra bem longe
Da mentira gasta e sibilante
E do grito contínuo do terror antigo
Que fica mais terrível enquanto o dia
Atravessa o morro e mergulha no mar
Quis ir pra bem longe
Mas tenho medo
Alguma vida nova pode explodir
Da velha mentira que arde no chão
E estalando no ar me deixar meio cego.
Dylan Thomas
Da mentira gasta e sibilante
E do grito contínuo do terror antigo
Que fica mais terrível enquanto o dia
Atravessa o morro e mergulha no mar
Quis ir pra bem longe
Mas tenho medo
Alguma vida nova pode explodir
Da velha mentira que arde no chão
E estalando no ar me deixar meio cego.
Dylan Thomas
Chora, neném
Ela disse que se chama Lenora. Boca vermelho sangue, olhos pintados como Nefertiti. Ela entrou em cena como se viesse do nada, de algum dia remoto, algum domingo registrado somente em uma fotografia desbotada como só as em preto e branco sabem ser: um desbotado amarelo. A luz estava sobre ela. Era o Senhor derramando sobre seu corpo, recém saído da adolescência, a luz de um milhão de holofotes. Lenora veio caminhando, sabendo que todos olhavam para ela.
Lenora. Ela disse que se chama assim. O cabelo cor de areia molhada pela maré alta, banhada na última claridade do dia, amarrado em rabo de cavalo. As pernas, desenhadas por algum arquiteto mitológico atormentado pela solidão em um labirinto do qual nem Ícaro iria conseguir escapar, traziam cada uma, uma curiosidade que a saia não escondeu. Na coxa direita, logo acima do joelho, uma tatuagem feita com pincel atômico preto, o nome de um delinquente juvenil; na esquerda, um joelho enfaixado, surrado por uma entorse. A alma de Lenora estava exposta, nua, branca, tatuada e enfaixada, reproduzida por dois avatares bem torneados. Eu teria guardado sua calcinha na fronha do meu travesseiro.
A voz tinha qualquer coisa de indecente, como um doce de calda derramado de vagar no fundo da tigela. Era tão macia e quente que não parecia vir dos lábios da boca. Lenora, se é que esse é mesmo o seu nome, sabia bem que papel deveria desempenhar naquele espetáculo e enganou a todos muito bem. Ou quase todos. Decerto ela pensou que podia se fazer passar por cínica. Decerto não lembrou que algum velho conhecido poderia estar entre os expectadores daquela ceninha toda. Ah, não, com certeza tinha alguém que conhecia a sua outra encarnação. A que vestiu a pele pichada de uma devoradora de homens que dizia se chamar Lenora. Teu filho de pelúcia, "feio e louco, ficou só... chorando feito fogo à luz do sol". Segue agora nessa rua escura, quase meia-noite, acompanhada de malucos e outras almas perdidas, tão fingidos quanto você mesma. Come o que tem na mesa e não lança olhares achando que não vão sacar o teu desejo e a tua confusão. Teu livro está aberto para os que foram alfabetizados no teu idioma secreto, em aulas ministradas pela madrugada.
De toda sorte, à esta altura do campeonato, podemos chamá-la de Lenora. O nome verdadeiro está seguro apenas na voz que vem do estômago, congelado e contraído, de um pobre quadrado que caminha no teu rastro só pra respirar o ar perfumado que teu corpo desloca ao atravessar as ruas. Ela disse pra mim, no meio do último abraço, dado rapidinho como coito escondido dos pais, que apesar do sufoco e da desilusão, o mundo ainda é uma bola e gira bem rápido. Eu sei que o afago no braço no fim daquele enlace era só pra mim. Lenora, você é um perigo, à solta, entre as pessoas de bem, como um caco de vidro perdido na praia, como uma agulha usada e oxidada no meio do pátio. Você é um perigo por que, no fundo, de baixo dessa fantasia, você é honesta.
Lenora. Ela disse que se chama assim. O cabelo cor de areia molhada pela maré alta, banhada na última claridade do dia, amarrado em rabo de cavalo. As pernas, desenhadas por algum arquiteto mitológico atormentado pela solidão em um labirinto do qual nem Ícaro iria conseguir escapar, traziam cada uma, uma curiosidade que a saia não escondeu. Na coxa direita, logo acima do joelho, uma tatuagem feita com pincel atômico preto, o nome de um delinquente juvenil; na esquerda, um joelho enfaixado, surrado por uma entorse. A alma de Lenora estava exposta, nua, branca, tatuada e enfaixada, reproduzida por dois avatares bem torneados. Eu teria guardado sua calcinha na fronha do meu travesseiro.
A voz tinha qualquer coisa de indecente, como um doce de calda derramado de vagar no fundo da tigela. Era tão macia e quente que não parecia vir dos lábios da boca. Lenora, se é que esse é mesmo o seu nome, sabia bem que papel deveria desempenhar naquele espetáculo e enganou a todos muito bem. Ou quase todos. Decerto ela pensou que podia se fazer passar por cínica. Decerto não lembrou que algum velho conhecido poderia estar entre os expectadores daquela ceninha toda. Ah, não, com certeza tinha alguém que conhecia a sua outra encarnação. A que vestiu a pele pichada de uma devoradora de homens que dizia se chamar Lenora. Teu filho de pelúcia, "feio e louco, ficou só... chorando feito fogo à luz do sol". Segue agora nessa rua escura, quase meia-noite, acompanhada de malucos e outras almas perdidas, tão fingidos quanto você mesma. Come o que tem na mesa e não lança olhares achando que não vão sacar o teu desejo e a tua confusão. Teu livro está aberto para os que foram alfabetizados no teu idioma secreto, em aulas ministradas pela madrugada.
De toda sorte, à esta altura do campeonato, podemos chamá-la de Lenora. O nome verdadeiro está seguro apenas na voz que vem do estômago, congelado e contraído, de um pobre quadrado que caminha no teu rastro só pra respirar o ar perfumado que teu corpo desloca ao atravessar as ruas. Ela disse pra mim, no meio do último abraço, dado rapidinho como coito escondido dos pais, que apesar do sufoco e da desilusão, o mundo ainda é uma bola e gira bem rápido. Eu sei que o afago no braço no fim daquele enlace era só pra mim. Lenora, você é um perigo, à solta, entre as pessoas de bem, como um caco de vidro perdido na praia, como uma agulha usada e oxidada no meio do pátio. Você é um perigo por que, no fundo, de baixo dessa fantasia, você é honesta.
Permissão Para Pousar
Há muitos anos, um amigo meu, Richard Bach, me deu um presente. O poder de pegar carona com todas as aves que voam. Maneiro afu, né não? Eu sei. Também adoro. É preciso, inobstante, utilizar esse dom com cautela. A cada voo, no ponto mais alto, pode-se avistar sempre mais longe, e sempre lugares novos. Isso é, se prestar bastante atenção.
Não faz muito, estava sobrevoando os arredores do Arquipélago, descansando a vista sobre o mosaico de ilhas que eu conheço tão bem. A familiar conformação, a disposição delas no espaço verde escuro do oceano lá embaixo, assumindo formas e posições tão delicadas e harmoniosas que mais pareciam fazer parte de um único floco de neve, buscando uma forma mais eficiente de dissipar a energia que incide sobre ele vinda do sol. A beleza brutal e apenas simples do desenho que eu poderia traçar de olhos fechados, ligando os pontos que a minha constelação de ilhas formava sob mim. Puras e exatas como um anel de pirimidina.
Foi aí que olhei melhor e vi.
Estamos próximos ao Círculo de Fogo, portanto acho que nada mais natural poderia acontecer... Alguma pluma de calor encontrou caminho por entre a astenosfera e eruptiu crosta a fora. De onde eu estava naquela hora, ainda dava pra ver o fluxo piroclástico decolando do topo do vulcão maior que fica no centro da ilha recém formada. Apenas monitorei de longe. Voltei pra casa. Levou ainda quase um ano para que eu me desse conta da importância de editar a cartografia de região, então absorvi-me na tarefa de esquadrinhar sua geografia como um astrônomo que é consumido por cálculos à cerca da Nebulosa de Andrômeda.
E como eu fui consumido. Não mais do que teria sido se fosse precipitado na boca daquele vulcão. Aquela boca infernal que eu tanto temi e desejei. O processo deu-se gradativamente. A vegetação logo recobriu o basalto, deixando uma praia de sedimentos enegrecidos salpicada de foraminíferos. O vulcão no centro ainda está ativo. Que espetáculo terrível! Lahars descendo furiosamente em profusão. Os animais começando a colonizar o novo ambiente, seguindo o pioneirismo da vegetação. Novo universo. Mas por que, de repente, eu decidi que era preciso mapear o novo elemento? Oras, não foi uma decisão deliberada. Foi curiosidade mesmo, e daí? Eu gostava do que eu via, e o que eu via era energia. Como se fios desencapados corressem sob a grama molhada, esperando pra me matar. A cada novo sobrevoo, uma surpresa: bolhas de sabão ascendendo devagar, música ao longe, risos diluídos pelo vento nas folhagens.
Toda vez o sobrevoo é acolhedor. A paisagem sorri, mas meu encanto é também medo. Quando eu mergulhar na lava, ou eu vou morrer queimado antes mesmo de poder sentir dor, ou o fogo vai fazer comigo o que o sangue do dragão Fafnir fez com a pele do Siegfried. Incomoda imaginar que o calor tão convidativo e hospitaleiro da ilha não passe de uma ilusão à qual eu possa ter me apegado. Ah, se eu também fosse uma ilha... que felicidade, que euforia descontrolada em promover uma convergência de placas!
Que bosta ser romântico, os pássaros da gente são de cera e o calor derrete eles tudo!
Não faz muito, estava sobrevoando os arredores do Arquipélago, descansando a vista sobre o mosaico de ilhas que eu conheço tão bem. A familiar conformação, a disposição delas no espaço verde escuro do oceano lá embaixo, assumindo formas e posições tão delicadas e harmoniosas que mais pareciam fazer parte de um único floco de neve, buscando uma forma mais eficiente de dissipar a energia que incide sobre ele vinda do sol. A beleza brutal e apenas simples do desenho que eu poderia traçar de olhos fechados, ligando os pontos que a minha constelação de ilhas formava sob mim. Puras e exatas como um anel de pirimidina.
Foi aí que olhei melhor e vi.
Estamos próximos ao Círculo de Fogo, portanto acho que nada mais natural poderia acontecer... Alguma pluma de calor encontrou caminho por entre a astenosfera e eruptiu crosta a fora. De onde eu estava naquela hora, ainda dava pra ver o fluxo piroclástico decolando do topo do vulcão maior que fica no centro da ilha recém formada. Apenas monitorei de longe. Voltei pra casa. Levou ainda quase um ano para que eu me desse conta da importância de editar a cartografia de região, então absorvi-me na tarefa de esquadrinhar sua geografia como um astrônomo que é consumido por cálculos à cerca da Nebulosa de Andrômeda.
E como eu fui consumido. Não mais do que teria sido se fosse precipitado na boca daquele vulcão. Aquela boca infernal que eu tanto temi e desejei. O processo deu-se gradativamente. A vegetação logo recobriu o basalto, deixando uma praia de sedimentos enegrecidos salpicada de foraminíferos. O vulcão no centro ainda está ativo. Que espetáculo terrível! Lahars descendo furiosamente em profusão. Os animais começando a colonizar o novo ambiente, seguindo o pioneirismo da vegetação. Novo universo. Mas por que, de repente, eu decidi que era preciso mapear o novo elemento? Oras, não foi uma decisão deliberada. Foi curiosidade mesmo, e daí? Eu gostava do que eu via, e o que eu via era energia. Como se fios desencapados corressem sob a grama molhada, esperando pra me matar. A cada novo sobrevoo, uma surpresa: bolhas de sabão ascendendo devagar, música ao longe, risos diluídos pelo vento nas folhagens.
Toda vez o sobrevoo é acolhedor. A paisagem sorri, mas meu encanto é também medo. Quando eu mergulhar na lava, ou eu vou morrer queimado antes mesmo de poder sentir dor, ou o fogo vai fazer comigo o que o sangue do dragão Fafnir fez com a pele do Siegfried. Incomoda imaginar que o calor tão convidativo e hospitaleiro da ilha não passe de uma ilusão à qual eu possa ter me apegado. Ah, se eu também fosse uma ilha... que felicidade, que euforia descontrolada em promover uma convergência de placas!
Que bosta ser romântico, os pássaros da gente são de cera e o calor derrete eles tudo!
Sou eu quem caminha esta noite
em meu quarto ou sou o mendigo
que espreitava em meu jardim
ao cair da noite?
Olho ao redor
e descubro que tudo
é o mesmo e não é o mesmo...
A janela estava aberta?
Não havia eu já adormecido?
Olho ao redor
e descubro que tudo
é o mesmo e não é o mesmo...
A janela estava aberta?
Não havia eu já adormecido?
Não era verde-pálido o jardim?...
O céu era claro e azul...
e há nuvens
e está ventando
e o jardim está escuro e triste.
O céu era claro e azul...
e há nuvens
e está ventando
e o jardim está escuro e triste.
Penso que meu cabelo era negro...
Eu me vestia de cinzento...
E meu cabelo é cinzento
e estou vestindo negro...
É este o meu passo?
Tem essa voz, que agora ressoa em mim,
os ritmos da voz que eu costumava ter?
Sou eu mesmo ou sou o mendigo
que espreitava em meu jardim
ao anoitecer?
Olho ao redor...
Há nuvens e está ventando...
O jardim está escuro e triste...
Eu venho e vou... Não é verdade
Eu me vestia de cinzento...
E meu cabelo é cinzento
e estou vestindo negro...
É este o meu passo?
Tem essa voz, que agora ressoa em mim,
os ritmos da voz que eu costumava ter?
Sou eu mesmo ou sou o mendigo
que espreitava em meu jardim
ao anoitecer?
Olho ao redor...
Há nuvens e está ventando...
O jardim está escuro e triste...
Eu venho e vou... Não é verdade
que eu já adormeci?
Meu cabelo está cinzento... E tudo é o
mesmo e não é o mesmo...
Juán Ramón Jiménez
Assinar:
Postagens (Atom)