Permissão Para Pousar

 Há muitos anos, um amigo meu, Richard Bach, me deu um presente. O poder de pegar carona com todas as aves que voam. Maneiro afu, né não? Eu sei. Também adoro. É preciso, inobstante, utilizar esse dom com cautela. A cada voo, no ponto mais alto, pode-se avistar sempre mais longe, e sempre lugares novos. Isso é, se prestar bastante atenção.

 Não faz muito, estava sobrevoando os arredores do Arquipélago, descansando a vista sobre o mosaico de ilhas que eu conheço tão bem. A familiar conformação, a disposição delas no espaço verde escuro do oceano lá embaixo, assumindo formas e posições tão delicadas e harmoniosas que mais pareciam fazer parte de um único floco de neve, buscando uma forma mais eficiente de dissipar a energia que incide sobre ele vinda do sol. A beleza brutal e apenas simples do desenho que eu poderia traçar de olhos fechados, ligando os pontos que a minha constelação de ilhas formava sob mim. Puras e exatas como um anel de pirimidina.

 Foi aí que olhei melhor e vi.

 Estamos próximos ao Círculo de Fogo, portanto acho que nada mais natural poderia acontecer... Alguma pluma de calor encontrou caminho por entre a astenosfera e eruptiu crosta a fora. De onde eu estava naquela hora, ainda dava pra ver o fluxo piroclástico decolando do topo do vulcão maior que fica no centro da ilha recém formada. Apenas monitorei de longe. Voltei pra casa. Levou ainda quase um ano para que eu me desse conta da importância de editar a cartografia de região, então absorvi-me na tarefa de esquadrinhar sua geografia como um astrônomo que é consumido por cálculos à cerca da Nebulosa de Andrômeda.

 E como eu fui consumido. Não mais do que teria sido se fosse precipitado na boca daquele vulcão. Aquela boca infernal que eu tanto temi e desejei. O processo deu-se gradativamente. A vegetação logo recobriu o basalto, deixando uma praia de sedimentos enegrecidos salpicada de foraminíferos. O vulcão no centro ainda está ativo. Que espetáculo terrível! Lahars descendo furiosamente em profusão. Os animais começando a colonizar o novo ambiente, seguindo o pioneirismo da vegetação. Novo universo. Mas por que, de repente, eu decidi que era preciso mapear o novo elemento? Oras, não foi uma decisão deliberada. Foi curiosidade mesmo, e daí? Eu gostava do que eu via, e o que eu via era energia. Como se fios desencapados corressem sob a grama molhada, esperando pra me matar. A cada novo sobrevoo, uma surpresa: bolhas de sabão ascendendo devagar, música ao longe, risos diluídos pelo vento nas folhagens.

 Toda vez o sobrevoo é acolhedor. A paisagem sorri, mas meu encanto é também medo. Quando eu mergulhar na lava, ou eu vou morrer queimado antes mesmo de poder sentir dor, ou o fogo vai fazer comigo o que o sangue do dragão Fafnir fez com a pele do Siegfried. Incomoda imaginar que o calor tão convidativo e hospitaleiro da ilha não passe de uma ilusão à qual eu possa ter me apegado. Ah, se eu também fosse uma ilha... que felicidade, que euforia descontrolada em promover uma convergência de placas!

 Que bosta ser romântico, os pássaros da gente são de cera e o calor derrete eles tudo!

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