A jangada




 O centro da cidadezinha onde cresci nada de especial tinha para oferecer. A praça da igreja era a mais bonita e arborizada, com o comércio distribuído ao seu redor, lojas de caça e pesca, lojas de tecidos, dois bazares construídos um de frente para o outro, cada um de um lado da avenida principal, pertencentes ao mesmo dono, mas com nomes diferentes e que fingiam manter entre si uma concorrência perante os habitantes, além de três pequenos restaurantes e um mercado que era do maior comerciante da cidade. Esse homem dono do mercado possuía dois caminhões que empregava no transporte dos produtos que vendia no seu comércio, não dependendo portanto de uma distribuidora e até mesmo prestando esse serviço para os demais comerciantes locais, sendo um dos homens de negócios mais ricos daquela região. Seu filho estudava na mesma escola que eu e era um de meus melhores amigos. Eu o chamava de Zé.
 Era o fim de novembro, o jacarandá do pátio da escola estava florido e o chão ao redor tinha sido acarpetado com as suas pétalas caídas. O ar era quente e doce de se respirar. Zé e eu costumávamos nos encontrar em frente ao portão quando a aula terminava, conforme combinávamos ao nos vermos entrando na escola, antes de cada um ir se juntar a sua respectiva turma. Ao final da tarde, quando todas as outras crianças saíam da escola ao mesmo tempo em meio a muita algazarra, nós dois partíamos para casa por um caminho alternativo. Éramos os únicos entre nossos colegas que utilizavam aquele trajeto e possivelmente os únicos que sequer sabiam de sua existência. Esse caminho subia por uma rua de terra em uma pequena ladeira cujo outro lado acabava em um pontilhão de concreto por baixo do qual passava um arroio com o fundo de pedras. Após cruzar o arroio pelo pontilhão, seguia-se mais um quilômetro antes da estrada bifurcar e nossos caminhos separarem-se, indo então cada um para sua casa. Esse trajeto terminava sendo o mais longo possível para ambos, mas não nos importávamos com isso. A distância que tínhamos de percorrer até chegarmos em casa era inclusive parte da diversão.
 Certa tarde, depois da aula, quando fizemos nossa parada costumeira no pontilhão de concreto para olhar os reflexos do sol na água corrente, Zé fez um pedido incomum. Ele apresentou seu pedido na forma de um desafio, o que era muito natural vindo dele.
 - Aposto o que quiser - disse ele - que sei de uma coisa que você jamais ousaria fazer.
 - Eu não tenho medo de nada! Pode falar! – afirmei com uma convicção inabalável, levantando a voz e batendo no peito. Fiquei todo empertigado, tentando parecer muito seguro e destemido, olhando Zé de cima.  
 Ele não se alterara, apenas continuou debruçado sobre a mureta de concreto, olhando para a água que passava velozmente abaixo de nós. O fundo era verde-acinzentado, composto por pedras de tamanhos variados, cobertas pelo perifíton.
 - Você não teria coragem de descer o rio numa jangada.


 Eu não sabia direito como o pai de Zé tinha feito dinheiro na vida, mas todo mundo na região o conhecia por ser muito bom empreendedor e dedicado aos negócios. Não só sabia abrir novos horizontes no seu ramo e ocupar nichos diferentes em diversas áreas comerciais, como também comandava diligentemente os empreendimentos que já possuía. A tudo calculava. A tudo registrava. A tudo examinava com atenção e nenhum grão de arroz movia-se dentro de seus depósitos sem que ficasse sabendo. Procedia impecavelmente e comprometia-se com todo o espírito em seus negócios. O pai de meu amigo era um estrategista. Importava-se até com as penas que caíam da cauda de um pardal, eu tinha certeza, e as levava em consideração em seus cálculos. 
 O pai de Zé era um sujeito muito sério e passava-me a impressão de ser frio em relação a seus semelhantes. Não que fosse um homem desprovido de emoções, na verdade poderia muito bem ser o contrário disso. As coisas de que era feito e que compunham o quadro de sua vida eram de um material forjado em uma oficina diferente. No fundo, acreditava que ele era um homem solitário e um tanto melancólico. Dentro de sua sabedoria e estoicismo parecia haver um miolo de sólida tristeza.
 Zé havia me contado que seu pai era descendente de imigrantes alemães, que sua família ainda vivia em uma cidade fundada por colonos e que tradicionalmente trabalhavam cultivando a terra. Naquela colônia as pessoas falavam apenas em alemão e o pai de Zé aprendeu português de forma autodidata, acompanhando seu pai que comprava equipamentos agrícolas de vendedores da capital. Tinha muitos irmãos e não raro a comida na mesa era insuficiente para todos, não sendo também poucas as vezes em que fora para cama com fome. Com 12 anos e mal falando uma dúzia de palavras em português, fugiu de casa e foi morar em uma cidade portuária, onde trabalhou nos armazéns dos estaleiros até conseguir tornar-se sócio dos comerciantes locais que enviavam suas mercadorias pelo rio até outras cidades do Estado. Quando se casou, veio morar em nossa cidadezinha, onde rapidamente iniciou um empreendimento e onde nasceu meu amigo.
 Certo dia, movido por ideias que vinham trabalhando como pacientes engrenagens há alguns anos, postas em ação em algum momento do passado por eventos que talvez jamais saibamos ao certo, o pai de Zé começara a construir a jangada com a qual pretendia empreender uma inusitada viagem.


 Zé era dois anos mais velho do que eu e isso bastava para que o colocasse em um pedestal de conhecimento e experiência. Eu pensava haver um enorme abismo entre nós e essa percepção moldava nosso relacionamento. Zé era um pequeno rei, um tanto almofadinha, extremamente majestoso. Suas atitudes, seus modos, não condiziam com sua idade. Era uma criança com pose de adulto. Eu gostava dele porque era firme e mesmo assim, muito amigável. Ele não se intimidava e lutaria com quem fosse necessário, o que costumava mesmo acontecer, principalmente quando vinha em meu socorro e me defendia dos valentões que eu provocava.
 Nós costumávamos ir pescar juntos no rio. Apanhávamos pequenos peixes que agrupávamos com as mãos e colocávamos para secar ao sol. Nós os comíamos crus, algumas vezes durante o dia inteiro. Admirava sua esperteza e engenhosidade, também o fato de ele ser ambidestro. Era capaz de lançar uma pedra muito mais longe com a mão esquerda do que com a direita. Nós costumávamos disputar inúmeros jogos competitivos que ele, para meu desapontamento, sempre ganhava.
 - Se eu amolecer de propósito e deixar você vencer, você me odiará. Seria uma afronta para você e nossa amizade estaria arruinada. Portanto, vença-me. Esforce-se ao máximo.
 Naquele fim de tarde depois da aula, distraído com as imagens que oscilavam dentro do rio, recebi seu pedido.
 - Então você não teria medo de descer o rio em uma jangada?
 Meu desconcerto diante de sua pergunta deve ter ficado muito aparente. Não consegui dizer nada.
 - Meu pai construiu uma jangada e quer partir. Ele passou muitos dias trabalhando nela. Minha mãe diz que ele está falando da boca pra fora, que são apenas sonhos, uma ideia absurda. Mas eu sei que ele o fará, mais cedo ou mais tarde. Qualquer dia desses, meu pai pegará a jangada e tentará descer o rio sozinho. Eu vi seu olhar quando ele falou.
 Zé ficou calado por um momento, olhando o rio e acompanhando seu curso até onde a vista permitia. A sua comprida sombra chegava até a estrada próxima e possuía uma coloração violeta. O sol lançava seus raios quase horizontalmente àquela hora, deixando o ar ao nosso redor em tons dourados. O fundo do rio era verde.
 - Tenho certeza de que um dia desses, meu pai fará essa viagem. E sei também que ele morrerá.
 - Por que diz isso, Zé?
 - O rio passa pela caverna, como você sabe. Entrar não será problema, mas sair... – fez uma pausa, medindo o que diria depois – Os riscos não o preocupam tanto quanto a mim, que só quero que ele se salve. Porém existem muitas coisas que o prendem a este povoado, e são essas coisas que o impediram de partir até hoje, não a possibilidade de morrer. Ele sente que a promessa de sua vida, seu desejo mais puro, jamais se concretizará. Se de fato sua promessa não se cumprir, ele será apenas mais um homem comum. Não quebrará o encanto que nos mantém imobilizados nos mesmos lugares durante a vida toda.
 Eu sentia um nó em meu peito, um sentimento muito poderoso, como uma nova e mais apurada percepção de nossa vida. Ouvia as palavras de meu amigo e reconhecia a verdade nelas. Realmente parecia haver um encanto sobre nós, sobre todas as pessoas que conhecíamos. Estávamos percorrendo as mesmas trilhas gastas no meio da floresta. Andamos olhando apenas para o chão imediatamente diante de nós durante nossa vida inteira. Nossos pais e nossos avós, correndo desesperadamente em círculos, gerando filhos que também o façam quando eles próprios não mais conseguirem. Nossos espíritos foram empobrecidos por essa sina hereditária que transformava a todos em gado. Vivermos vidas previsíveis. Sermos qualquer coisa que não cause estranheza em nossos semelhantes. Cumprirmos expectativas vazias criadas para nós através de uma misteriosa mentalidade coletiva que dificilmente podia ser quebrada.
 Eu senti uma profunda tristeza e pensei em meus pais. Tive pena deles e também de mim mesmo. As palavras de Zé me tiraram daquele estado de espírito debilitante:
 - Por isso irei em seu lugar. Cumprirei sua promessa.
 Fiquei olhando para ele. Falava com seriedade e firmeza.
 - Pegarei a jangada do meu pai e partirei pelo rio. Salvarei mais do que sua vida, salvarei sua alma.
 Abateu-se sobre mim uma estranha agitação, como se uma onda de eletricidade caísse na minha cabeça e descesse pelo meu pescoço. Comecei a falar rapidamente, atropelando as palavras:
 - Irei com você! Pode contar comigo, eu quero ajudar a quebrar o feitiço que puseram sobre nossa gente!
 Zé sorriu e olhou para mim, seu rosto estava iluminado.
 - Sei que se você for junto, eu sobreviverei.


 Eu não acreditava realmente que pudesse garantir a segurança de Zé. O que me fizera decidir por acompanhá-lo foi sua coragem. Sabia que ele estava completamente absorvido pela ideia. Ele era o único menino de fibra do povoado. Ele tinha algo que eu considerava precioso e que ninguém mais ali possuía. Para mim, todos os demais estavam mortos naquela cidade, inclusive aqueles a quem eu amava profundamente. Sabia de tudo isso, sem sombra de dúvida, aos meus dez anos de idade. No entanto, a ousadia de meu amigo foi devastadora para mim. Queria estar junto dele, não importava o que pudesse acontecer.
 Combinamos de nos encontrar ao alvorecer, e assim o fizemos. Nós dois carregamos sobre nossas cabeças a jangada que o pai de Zé construíra, por dois ou três quilômetros, para fora dos limites da cidade, até uns morros verdes, próximos à entrada da caverna onde o rio tornava-se subterrâneo. A jangada não pesava muito, nós dois pudemos dar conta sem grande esforço e quase não foi preciso parar ao longo do caminho. A primeira claridade do dia nos alcançou à metade do trajeto, e o restante foi percorrido dentro de uma tênue cerração que a crescente luminosidade tornava branca no ar refrescante da manhã.
 A pequena embarcação possuía 1,5m por 2,5m e era equipada com refletores na proa como faróis, alimentados por uma bateria instalada na popa, acomodada dentro de uma caixa isolante. Chegamos à beira do rio e lançamos a jangada. Nós a empurramos até onde a água alcançava nossas cinturas e saltamos para cima. A água refletia o azul pálido do céu da manhã, borrado por esparsas nuvens cor-de-rosa. Logo a correnteza nos apanhou e nos levou rio a baixo, por onde tentávamos guiar nosso percurso com um remo comprido de taquara. Zé nos guiava o melhor que podia pelo rio sinuoso. Por um longo tempo, nada dissemos um ao outro.
 As pitangueiras das margens pendiam seus galhos sobre o rio, como damas que acenam com seus lenços em antigos dramas de cinema. Eu fitava a massa uniforme da água correndo sob nossa embarcação, olhando para um fundo vazio, onde nem mesmo meu reflexo tinha tempo de tomar contornos definidos. Olhei para frente para ver onde o rio nos levava e vi o pé de um morro muito próximo, sua base de rocha coberta pelo limo. Senti os pelos dos meus braços ficarem em pé. Tive a sensação de que iríamos bater violentamente contra uma parede de pedra. A frágil jangada despedaçar-se-ia conosco a bordo. Retesei cada músculo do corpo e fiquei quieto, esperando o momento de saltar. O rio, no entanto, fez uma curva pela direita do morro e o contornou mansamente. Terminada a curva, nos deparamos com a entrada da caverna. Uma sinistra boca preta entalhada na face da montanha, como se fosse um deus eternamente sedento, tragando o rio para dentro de si.
 Antes de nos aproximarmos da entrada, a montanha nos cobriu com sua sombra. Sob ela, o ar era sensivelmente mais frio. Era como se o céu tivesse subitamente nublado.  


 O calor que nos esperava dentro da caverna era intenso, mesmo àquela hora. O escuro absoluto imperava já há poucos metros da entrada, que ficara para trás e agora era uma distante fenda azulada. A umidade era opressiva e nos deixava desconfortáveis. Pelo menos a água era funda o suficiente para a jangada e veloz o suficiente para que não precisássemos remar. Acendemos os faróis da proa. As sombras que se projetavam nas reentrâncias da galeria pareciam volumes palpáveis. As pedras escarpadas ao redor estavam como que tomadas por sombras vivas, que mudavam de lugar e forma conforme avançávamos com as lanternas ligadas. Senti um estranho enjoo quando vi seus movimentos ao nosso redor. Elas pareciam ter consciência de que havia intrusos em seus domínios. 
 - Não olhe para as sombras – murmurou Zé ao meu ouvido.
 A certa altura, nossas luzes acordaram um bando de morcegos que passaram a voar agitadamente sobre nossas cabeças, enchendo o espaço com o som de suas asas. Moviam-se tão desorientados que pareciam estar dormindo há séculos ali dentro. Conforme penetrávamos mais nas entranhas da montanha, nem mesmo morcegos podiam ser encontrados, apenas um ar parado, pesado e rarefeito. Assim prosseguimos pelo que me pareceram horas, até chegarmos a um ponto onde a água era retida em uma espécie de bacia profunda, uma câmara circular em que a correnteza parecia estagnar-se; a água mal se movia. Era como se o curso do rio tivesse sido barrado ali dentro.
 - Não há para onde irmos – ouvi Zé sussurrando outra vez, - Não temos como continuar e a jangada não pode voltar contra a corrente.
 De fato, a corrente era muito forte para que conseguíssemos voltar.
 - Vamos procurar alguma saída lá embaixo, - disse eu, enquanto ficava em pé para tocar o teto da caverna. Mal precisava levantar meu braço. Quando entramos na montanha, reparei que a altura da caverna era como a de uma catedral, com uns 15m aproximadamente. Como bastava ficarmos em pé para alcançar o teto da caverna ali onde estávamos, concluí que estávamos na superfície de um lago que media 15m de profundidade. A água devia ter sido represada ali por algum motivo.
 Tiramos nossas roupas e começamos a mergulhar. Procuramos por algum movimento da água, alguma possível correnteza por onde pudéssemos seguir. Na superfície fazia muito calor, mas um metro abaixo a água ficava muito fria. Senti a diferença na temperatura e fiquei assustado, presa de um medo animal incompreensível que nunca sentira antes. Retornei à superfície. Zé deve ter sentido o mesmo que eu. Trombamos um com o outro ao voltarmos. Eu estava agitado, recuperando o fôlego com dificuldade.
 - Penso que estamos próximos de nossa morte – disse ele solenemente.
 Eu, porém, não partilhava de seu estado de espírito solene e de seu desejo de morrer ali. Sem responder, voltei a mergulhar e procurei freneticamente por uma saída. Algum deslizamento provocado por uma enchente deve ter deslocado as pedras que formaram uma barragem. Encontrei uma estreita passagem por onde poderia passar. Voltei à superfície e puxei Zé para baixo para mostrar-lhe a passagem. Logicamente, não poderíamos levar a jangada conosco e teríamos de deixa-la. Pegamos nossas roupas e fizemos uma trouxa bastante comprimida com elas e mergulhamos até encontrarmos de novo o buraco, pelo qual passamos.
 A passagem nos levou até uma cascata interna, de poucos metros de altura, pela qual caímos em outra bacia profunda. Diferente da anterior, aquela piscina natural prosseguia livremente por sobre as bordas de pedra em um curso tão veloz quanto ao que encontramos ao entrar na montanha. O rio ali era menos fundo e atingia nossas cinturas. Havia uma claridade vinda do fim de um corredor por onde seguia a correnteza. Nós andamos nessa direção até a saída de uma caverna mais baixa, até que enxergamos o céu e nossa visão foi ofuscada pela luz.


 Sem dizermos uma palavra, estendemos nossas roupas nas pedras da margem para secarem ao sol. Depois, seguimos para a cidade. Zé estava inconsolável por ter perdido a jangada do pai.
 - Ele teria morrido ali – reconheceu ele, por fim – Meu pai jamais passaria por aquele buraco. Ele é muito grande para isso. Meu pai é grande, é gordo. Mas ele seria forte o bastante para encontrar seu caminho de volta pela correnteza até a entrada.
 Eu não achava isso, mas nada disse. Tudo o que me importava então era que a missão de Zé fora cumprida. Seu triunfo foi completo. Não somente salvou sei pai, como também provara que a jornada era possível. De fato, um homem adulto jamais conseguiria empreender a viagem, mas esse não era o nosso caso. Zé me mostrou a importância de realizar as tarefas do espírito dos homens, que sempre se repetem através da história, como promessas feitas nos primórdios da humanidade e que são transmitidas pelo tempo no fio condutor de intermináveis gerações. Ecos dos primeiros gritos de liberdade, quando nossos antepassados foram vítimas de um misterioso e sinistro roteiro em um teatro mágico, no qual os papeis são encenados mansamente pela eternidade, em um débil melodrama sem sentido, onde os filhos herdam os papeis de seus pais. Os nossos impulsos de quebrar a continuidade dessa macabra ciranda são espasmos no corpo do inconsciente coletivo da espécie humana. Eles se repetem aqui e ali, em diversas intensidades, em grandes movimentos sociais, em pequenas ações particulares. Por eras, nossos olhos lutam para se abrir, mas o pesado sono induzido nos impede de ver novamente o universo ao nosso redor, e tudo o que temos então são ilusões, sonhos, imagens e sons que vagamente reproduzem a verdade. E somos mantidos satisfeitos enquanto encaramos sombras na parede. Alguns de nós, porém, como Zé, por alguma razão misteriosa, vêm parar neste mundo com uma “pulga atrás da orelha”, com uma inquieta e permanente dúvida diante de tudo.
 Percebeu que seu pai era perturbado por um anseio inexplicável, julgado pelos mais adormecidos, desacreditado e ridicularizado. Por já ser muito velho e estar muito envolvido nos enredos que nos dominam, a tarefa que recaíra sobre seu espírito cansado foi transmitida ao filho. A vitalidade de garoto do meu amigo era o que faltava para que o desejo primitivo fosse satisfeito e no fim foi o que aconteceu. O Espírito sempre encontra uma saída. A interminável luta, a promessa hereditária iria repousar por mais uma geração ou duas, seguindo seu caminho silenciosamente através do tempo. Depois de nos separarmos naquele dia, nunca mais nos falamos. Propositalmente, terminei nossa amizade. Era o único gesto que eu poderia fazer para mostrar o quão profundamente suas atitudes me afetaram. Meu débito para com aquele menino era imperecível. No meu entender, ele era o melhor de todos. O senhor daquela cidade, libertador de seu povo.

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