O pedestre

  
 Ingressar no silêncio que era a cidade às oito de uma noite enevoada de novembro, pôr os pés na calçada irregular de concreto, evitando pisar nas fendas onde crescia o mato e ir em frente, mãos nos bolsos, através dos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Parava em uma esquina e olhava para as longas avenidas enluaradas que se estendiam nas quatro direções, decidindo para que lado ir. Na verdade, não fazia diferença. Estava só neste mundo de 2053 d.C, ou praticamente só, e tomando finalmente uma decisão, escolhendo um caminho, seguiria em frente, lançando baforadas de ar gelado como se fossem a fumaça de um charuto. Às vezes, andava horas, quilômetros, e só voltava para casa à meia-noite. Passava por casas e apartamentos, com janelas escuras, e era como se andasse por um cemitério, onde apenas fracos lampejos da luz de vaga-lumes aparecessem brilhando brevemente, por trás das janelas. Súbitos fantasmas azulados pareciam manifestar-se nas paredes das salas, quando as cortinas ainda não houvessem encerrado a noite do lado de fora; ou então, ouviam-se murmúrios e suspiros onde uma das janelas de um edifício parecendo um túmulo ainda estivesse aberta. O Sr. Leonard Mead parava, escutava, olhava e prosseguia, seus pés silenciosos na calçada arruinada. Já fazia muito tempo que havia decidido usar sapatos de tênis para andar à noite. Se usasse sapatos de sola de couro, os cães, em bandos intermitentes, acompanhariam seu passeio com um contraponto de latidos, e luzes poderiam se acender, rostos aparecer e uma rua inteira se assustar com a passagem daquela figura solitária no início de uma noite de novembro. 
 Nessa noite, havia iniciado seu passeio no rumo oeste, na direção do mar distante. Havia uma névoa gelada no ar, cortando o interior do nariz e ardendo nos pulmões como uma árvore de Natal. Podia-se sentir as luzes geladas piscando, todos os galhos cobertos de uma neve invisível. Escutou satisfeito o rumor de suas solas de borracha pisando nas folhas secas, e soprou por entre os dentes um assovio quieto e gelado, às vezes colhendo de passagem uma folha e examinando o desenho de seu esqueleto à luz dos postes esparsos, aspirando seu cheiro de ferrugem. 
 — Alô — murmurava para todas as casas enquanto passava. — O que está passando hoje no canal 4, no canal 7 e no canal 9? Para onde estarão correndo os mocinhos? Será realmente a cavalaria que eu vejo no alto da colina, pronta a vir em seu socorro? 
 A rua estava silenciosa, longa e vazia, e apenas sua sombra se movia, como a sombra de um falcão no voo. Se fechasse os olhos e ficasse parado, quieto, podia imaginar-se acima de uma planície, um deserto do Arizona no inverno sem vento, nenhuma casa à vista num raio de mil quilômetros, apenas as ruas — leitos secos de rios — por companhia. 
 — O que estará passando agora? — perguntou às casas, olhando para seu relógio de pulso. — Oito e meia. Hora de uma dúzia de assassinatos de diversos tipos? Um programa de perguntas e respostas? Um musical? Um comediante caindo do palco? Era mesmo o murmúrio de risos que vinha de uma casa branca como a lua? Hesitou um instante, mas prosseguiu quando viu que nada acontecia. Tropeçou em um trecho especialmente estragado da calçada. O cimento estava desaparecendo sob flores e mato. Em dez anos de caminhadas diurnas e noturnas, tendo percorrido milhares de milhas, nunca havia encontrado outro caminhante. Nem um só, em todo esse tempo. Chegou a um trevo silencioso, no ponto em que duas vias expressas cruzavam a cidade. Durante o dia, era uma torrente ruidosa de carros, os postos de gasolina abertos, um grande rumor de insetos e uma corrida incessante por melhores posições, enquanto os besouros, deixando escapar um leve incenso de seus escapamentos, deslizavam para longe no rumo de suas casas. Mas agora essas avenidas também pareciam riachos na seca, apenas pedras, leito e luar. Tomou uma transversal, iniciando seu caminho de volta para casa. 
 Estava a um quarteirão de seu destino quando um carro dobrou uma esquina e lançou sobre ele um cone branco de luz. Ficou transido como uma mariposa noturna, aturdido pela luz e atraído por ela. Uma voz metálica falou:
 — Pare. Fique onde está! Não se mexa! 
 Parou. 
 — Levante as mãos! 
 — Mas... 
  — Mãos ao alto! Ou atiramos! 
 Era a polícia, é claro, mas que coisa rara e incrível! Em uma cidade de três milhões de habitantes, restava apenas um carro de polícia, não era assim? Um ano antes, em 2052, ano de eleições, a polícia havia sido reduzida de três carros para apenas um. O crime estava em extinção; agora não havia necessidade de polícia, com a exceção deste único carro, vagando e vagando pelas ruas vazias. 
 — Seu nome! — disse o carro de polícia em um tom metálico. Não podia ver os homens em seu interior devido à luz cegante em seus olhos. 
 — Leonard Mead. 
 — Mais alto! 
 — Leonard Mead! 
 — Ocupação? 
 — Acho que pode me considerar um escritor. 
 — Sem profissão — disse o carro de polícia, como se falasse sozinho. 
 A luz o mantinha preso como um espécime de museu, o alfinete atravessando o peito. 
 — Pode-se dizer que sim — disse o Sr. Mead. Não escrevia nada havia anos. 
 Não se compravam mais livros e revistas. Agora, tudo acontecia à noite nas casas tumulares, pensou, prosseguindo em sua fantasia. Os túmulos mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como mortas, luzes azuladas ou multicoloridas banhando seus rostos, sem entretanto jamais tocá-los realmente. 
 — Sem profissão — disse a voz mecânica com um chiado. — E o que está fazendo na rua? 
 — Andando — disse Leonard Mead. 
 — Andando! 
 — Só andando — disse simplesmente, mas seu rosto ficou gelado. 
 — Andando, só andando, apenas andando?
  — Sim, senhor. 
 — Andando para onde? Por quê? 
 — Para tomar ar. Para ver. 
 — Seu endereço! 
 — Saint James Street, número 11, sul. 
 — E o senhor tem ar em sua casa, não é? O senhor tem um condicionador de ar, não tem, Sr. Mead? 
 — Tenho. 
 — E o senhor tem uma tela em sua casa para assistir? 
 — Não. 
 — Não? — Houve um silêncio cheio de estalidos, que por si só valia como uma acusação. 
 — O senhor é casado, Sr. Mead? 
 — Não. 
 — Não é casado — disse a voz policial por trás do facho de luz. A lua estava alta e clara entre as estrelas, e as casas, cinzentas e silenciosas. 
 — Ninguém me quis — disse Leonard Mead com um sorriso. 
 — Não fale sem ser solicitado! 
 Leonard Mead esperou na noite fria. 
 — Só andando, Sr. Mead? 
 — É. 
 — Mas o senhor não explicou com que finalidade. 
 — Já expliquei: tomar ar, ver, e apenas andar. 
 — O senhor faz isso muitas vezes? 
 — Todas as noites, há anos. 
 O carro de polícia estava parado no meio da rua, com seu alto-falante zumbindo baixinho. 
 — Bem, Sr. Mead... 
 — Acabou? — perguntou delicadamente Mead.
 — Sim — respondeu a voz. — Vamos. — Ouviu um chiado, um estalo, e a porta traseira do carro de polícia abriu-se. 
 — Entre aqui. 
 — Espere aí, não fiz nada! 
 — Entre. 
 — Protesto! 
 — Sr. Mead... 
 Andou como se tivesse ficado bêbado de repente. Passando pela janela da frente, olhou para dentro do carro. Como esperava, não havia ninguém no banco da frente, ninguém dentro do carro. 
 — Entre. 
 Pôs a mão na porta e olhou para o banco de trás, que era uma pequena cela, uma pequena prisão preta com grades. Cheirava a aço. Cheirava a anti-séptico forte, tinha um odor limpo, duro e metálico demais. Não havia nada suave naquele carro. 
 — Se o senhor ainda tivesse uma esposa para lhe fornecer um álibi... — disse a voz de ferro. — Mas... 
 — Para onde está me levando? 
 O carro hesitou, ou melhor, produziu um leve estalido e um rumor de engrenagens, como se a informação, em algum lugar, estivesse sendo processada, passando em cartões e mais cartões perfurados à frente de uma célula fotoelétrica. 
 — Para o Centro Psiquiátrico de Pesquisa de Tendências Regressivas. 
  Entrou. A porta se fechou com um ruído seco. O carro de polícia partiu pelas avenidas da noite, lançando à frente suas luzes mortiças. Pouco depois, passaram por uma casa em uma rua, uma casa em uma cidade inteira de casas escuras. Mas essa casa estava com todas as luzes acesas, brilhando, todas as janelas eram quadrados de um amarelo gritante, quente na escuridão fria. 
  — Aquela é a minha casa — disse Leonard Mead. Ninguém respondeu. O carro prosseguiu pelas ruas vazias, que pareciam leitos secos de rios, e foi em frente, deixando-as para trás com suas calçadas vazias, e nenhum som e nenhum movimento por todo o resto de noite fria de novembro. 


 Conto de Ray Bradbury, retirado do livro "Os Frutos Dourados do Sol".

O urubu-rei




  Cresci em uma cidade no interior do Estado, desde os primeiros meses de vida até os dez anos de idade. Não só a cidade era interiorana, mas a região dentro dela onde eu vivia era distante do mercado, da pequena rodoviária, da praça da igreja, do prédio da prefeitura, da fábrica e da escola. Nos limites da cidade, bem próximo à estrada, ficava o lugar onde passara a infância. 
 A chácara era do tamanho do mundo,  cheia de beleza, diversidade e mistério. O pica-pau furava os troncos, procurando larvas, podia vê-lo de dentro do galpão que havia no fundão, construído pelo meu pai para fabricar suas peças de artesanato, que venderia no Centro. O canário belga cantava a tarde inteira, entusiasticamente, na gaiola pendurada do lado de fora, longe o bastante do telhado para que o calor da telha de Brasilit não sufocasse o animal, mas nem tão perto do chão onde os cães pudessem incomodá-lo. Houve época em que se plantou morango, que embalávamos em caixinhas a serem comercializadas pela cidade. O milho, quando alto, era floresta virgem sempre pronta a ser desbravada, mas renovada cada vez, perfeita aventura de salvações por um triz e finais heroicos que eu naturalmente protagonizava. Uma laranjeira crescia ao lado do galinheiro e o sombreava, este ficava atrás do quartinho de ferramentas, ambos construídos ainda pelo meu avô, logo depois de terminar a casa. Os dias eram longos e sua claridade era de um amarelado permanente, como se fosse sempre fim de tarde. A rua de chão poeirento era um risco alaranjado entre o pasto e a cerca de casa e o cinamomo fazia sombra no tronco deitado que servia de banco, as noites ainda existiam naquele tempo, assim como os pátios e os galos madrugadores.
 Nas taquareiras distantes e densas foi que vi o gavião pela primeira vez. Ele estava pousado na ponta de uma taboca alta, majestoso, observando a região. O senhor da vida e da morte. A ave era parda e tinha o bico recurvo. Fui chegando perto muito cautelosamente, nem sabia porquê,  força de alguma intuição vinda muito do fundo, de algum canto escuro da consciência. Sabia, sem que me contassem, que desses bichos devíamos aproximar-nos mansamente. Pisava de leve. A mão direita segurando firme o bodoque, apertando a borracha para não balançar. Mal respirava. Quando cheguei bem perto da taquareira, fiquei olhando para cima. Ele ainda estava lá, virando a cabeça ao redor, procurando caça. Enfiei a mão esquerda no bolso da calça, onde deixava as pedrinhas. Segurei uma. Meu pescoço já estava duro, não pelo tempo que ficara olhando o gavião, que fora breve, mas pela tensão que eu sentia. A ave voou embora. 

 Aos sábados, a babá não vinha. Minha mãe ficava em casa e eu a acordava cedo para tomarmos café da manhã juntos, um evento que ocorria só então e no dia seguinte da semana. Meu pai ia correr até o açude, depois retornava para trabalhar no galpão. Enquanto a mãe iniciava os cuidados domésticos, eu lhe fazia companhia até o momento em que ficava entediado e saía para o pátio, o que não demorava muito. Não raro intrometia-me no trabalho do pai, ficando por perto enquanto preparava resina, derramava-a nos moldes de látex e desenformava as peças que estavam prontas, tendo sido fabricadas no dia anterior. Gostava de observar os pequenos rinocerontes, elefantes, panteras, bustos africanos, totens indígenas e figuras gregas tomando forma e solidificando-se a partir daquele caldo viscoso furta-cor. 
 Houve um sábado em que apanhei o bodoque que meu avô havia confeccionado para mim, juntei algumas pedrinhas nos bolsos e saí para o mato, do outro lado da estrada da pinguela. O mato bordeava o antigo quadro da mina, As Cinzas. Um dos cães foi junto comigo, farejando à frente seus próprios interesses, eu o seguia com uma confiança absoluta. 
 Eu caminhava cuidando os galhos das árvores, na esperança de encontrar o gavião. Na inconsequência de minha infância, deixava o cuidado do chão por onde pisar com o meu cachorro, seguindo atrás dele. O silêncio era intenso, quebrado apenas pelos nossos passos sobre folhas secas e trechos de diálogos internos que eu deixava escapar em voz alta, de vez em quando. O mato era eterno e solitário. Detinha-me ocasionalmente em frente a algumas árvores e pedras recobertas por líquenes para admirá-las e apontar com o dedo detalhes que me pareciam mais interessantes em suas formas, como se chamasse a atenção de alguém para o fenômeno. Havia vozes a certa altura. Eram homens conversando. Em dado momento nos encontramos. Eles vinham da direção para onde eu ia, ambos armados com espingardas de fabricação caseira. Eram caçadores, como eu próprio. Eu conhecia um deles, Seu Adair, mais velho que meu pai e conhecido dele, morava em um rancho a poucos quilômetros de nós. O seu rosto era largo e moreno, os zigomas bem angulosos deixavam clara a descendência indígena, o bigode era cinza-escuro, seu sorriso era largo, faceiro e carecia de pré-molares. Seu Adair falava alto e ria mais alto ainda, estufando o peito, com voz grave e um jeito campeiro que eu achava engraçado. Quando ele me viu, falou ao companheiro:
 – Olha ali, tem um “hôme”! – riu-se então e chegou perto, olhando com teatral interesse o meu bodoque. 
 – Mas tu tá caçando o quê com essa baita arma! – virou-se para o outro homem e disse: – É o guri do Miguel. 
 ­– Tô caçando um gavião que eu vi uma vez lá na minha casa – expliquei aos homens. 
 Ambos riram, mas logo Seu Adair falou, fazendo-se de sério:
 – Ah, tu tá querendo pegar um gavião então. Ele deve tá comendo as galinha do teu avô lá – ele então olhou bem para mim, nos meus olhos, e disse como quem compartilha solenemente um segredo: – Eu tô atrás do urubu-rei.
 – Urubu-rei? Ué, mas por quê? – perguntei, muito curioso e instigado pela entonação de Seu Adair, sem dar-me conta, no entanto, de que eu também não sabia o motivo pelo qual estava buscando o gavião.
 – Porque é grande – disse e sorriu, um brilho diferente no olhar. 

 Meu pai contava que o Seu Adair tinha um filho, e que era amigo do rapaz quando eram jovens. Um dia, o filho do Seu Adair morrera tragicamente em um acidente de trânsito, decapitado sob as ferragens da motocicleta que pilotava. Também contava que o velho gostava muito de mim por lembra-lo de alguma forma o filho perdido, um homem que eu jamais viria a saber como era realmente. Seu Adair, além de possuir algumas cabeças de gado, envolvia-se em diversos empreendimentos que não poderiam ser chamados de estáveis, o que representava alguma face rebelde, um lado independente e aventureiro daquele senhor. Era um criador de gado, mas também um jogador. A certa altura da vida, depois da morte do filho, tornou-se um mestre de muitos ofícios, assumindo muitos riscos com essa decisão. Era caçador e fornecia materiais para curandeiros da região, ossos de certos animais, bicos, unhas, penas, além de ervas e insetos de diversas espécies para ervanários locais e colecionadores, também aves e mamíferos para lojas de animais domésticos e taxidermistas. Por conhecer bem as plantas medicinais que cresciam naquele lugar, ele próprio realizava alguns serviços de curandeiro.
 Algumas pessoas da cidade pareciam acreditar mesmo que o Seu Adair era montado no dinheiro, outras que ele até conseguia lucrar bastante com suas atividades, mas que não era capaz de manter ou investir corretamente qualquer fortuna que pudesse juntar. Sim, ele possuía muitos desafetos e o que não faltava na cidade eram fofoqueiros de plantão que debatiam a vida alheia o tempo todo. Não só seus detratores, mas também seus amigos achavam que ele poderia fazer rios de dinheiro facilmente, estabelecendo o negócio mais próspero da região com aquilo que melhor entendia: caçar animais e descobrir plantas curativas. 

 Andava, desde aquele dia no mato, mais atento ao céu e aos galhos mais altos das árvores que eu conseguia enxergar. Ainda procurava pelo gavião, mas também agora ansiava ver algum urubu. Não qualquer urubu, logicamente, mas o urubu-rei. E eu o queria ver para saber o quão grande realmente era. Os que eu via imóveis no ar, sobrevoando algum lugar à distância, sobre algum capão ou campo, eram seus meros súditos. Ao meu entender, naquele tempo em que a imaginação era mais presente do que o conhecimento, o urubu-rei de Seu Adair era uma ave majestosa, muito grande e astuta, um poderoso mestre do céu, pai das outras aves e conhecedor dos mistérios que só os animais que voam poderiam entender, se ele lhes contasse. A mente de uma criança solitária, justamente por não precisar adequar-se ou nivelar-se a outras mentes de mesma idade, pode alcançar devaneios altíssimos e absurdos, por vezes voando muito alto, mas com asas verdadeiras, do tipo que não derretem por serem feitas de material inapropriado ao aproximar-se do sol. 
 Em casa, observava o canário e sentia por ele uma mistura de piedade e desprezo, já que era uma ave condenada a um universo tão estreito, tão apertado, um pássaro de enfeite. Sobre a antiga mesa de madeira pesada, do tempo da minha falecida avó, meus desenhos, feitos com lápis de cor e giz de cera nas folhas de papel que ganhava da mãe, eram dedicados ao tema “aves”, especialmente gaviões e representações do que eu entendia por urubu-rei. Algumas figuras, inclusive, ostentavam coroa. Sobre a escrivaninha do meu quarto, havia uma pequena réplica em resina de um totem indígena norte-americano, presente do meu pai. O totem consistia de uma coluna de animais pousados uns sobre os outros, um urso na base, com um lobo sobre suas costas e, por sua vez, pousada sobre os ombros do lobo, uma águia. Ao acordar pela manhã eu via antes de tudo, na semiescuridão do quarto, recortada pela insinuante claridade que vinha da veneziana atrás dela, a águia do totem de resina. Poderia ser um gavião. Ou o urubu-rei, que eu tanto desejava poder capturar, porque era grande.
 Sabia que uma arma tão pueril quanto o meu bodoque jamais daria conta de derrubar uma ave de grande porte, nem mesmo serviria para projetar uma pedra a altura suficiente. Por esse motivo, imaginava que Seu Adair fosse caçá-lo antes de mim. Ele era um homem adulto e, portanto, poderia possuir quantas espingardas quisesse. Um dia, às voltas com essa conclusão, dei-me conta de que meu pai, mesmo sendo um homem adulto, embora mais jovem que Seu Adair - este era pouco mais jovem que meu avô -, não tinha arma de qualquer natureza. Em minha recente obsessão, faltara-me à memória uma lição que meu pai sempre reforçava: a de não tirar uma vida por prazer ou esporte, fazendo-o somente em caso de necessidade, fosse defesa ou fome. Meu pai jamais aprovara o fato de eu andar com um objeto como o bodoque, feito para mim por meu avô, e mais de uma vez o confiscara, ora escondendo onde julgava que eu não pudesse encontrar, o que se mostrava um engano, ora atirando-o longe para dentro do milharal ou das taquareiras, onde também sempre o reencontrava por conhecer muito bem aqueles lugares. Enfim, fora uma fase na vida de um menino do interior, não diferente de muitos outros. O encantamento e o respeito pela vida e os seus seres, incutidos em mim pelos insistentes discursos do meu pai, ao final, suplantaram o momentâneo flerte com a morte e seus prazeres tão primitivos. 

 Dando-me conta de que não era matar ou ferir os animais o que eu queria fazer, passei a ir desarmado em minhas incursões pelo mato que margeava As Cinzas. Deixara para trás o desejo de matar o objeto de minha mais nova adoração platônica, feito que repetiria ainda outras vezes na vida. Estava agora decidido a encontrar o urubu-rei e observá-lo por quanto tempo pudesse, para admirar os movimentos belos e poderosos que deveria fazer ao pousar entre os seus urubus-súditos, os quais o estariam apenas aguardando para que desse o sinal de “podem comer”, todos em volta de alguma carniça. Eu desejava então estudar seus hábitos, entender seus métodos, conhecer o mistério. Vê-lo de perto. Talvez agachado atrás de alguma rocha, ou moita, ou ainda encarapitado sobre algum galho estratégico, posicionado no melhor ângulo possível para o espetáculo. 
 Essas fantasias cruzavam-me a cabeça enquanto passeava todos os dias, mas uma coisa me preocupava. Seu Adair queria caçar o urubu-rei. Matá-lo. Porque era grande! Se ele encontrasse a ave antes de mim, antes que eu pudesse observá-la viva, seria a pior tragédia que era capaz de conceber. Foi com a intenção de dissuadi-lo que, certa tarde, fui até o rancho onde morava. 
 Caminhei por quase uma hora, subi a rua de chão da frente de casa, cruzei a estrada e costeei a propriedade de outro senhor que vivia ali perto, também conhecido da família, Seu Adão, que era irmão mais novo de Seu Adair. Atravessei a sanga pela pinguela, segui por uma estradinha lomba acima e por fim, já com o sol mais baixo, cheguei à casa. Era uma humilde casinha de teto baixo. Grande mesmo era o galpão onde guardava suas carroças e um trator. Havia um pequeno pátio de pedra, separado do campo por uma cerca. Além dessa cerca, o gado. Havia lá também, sereno, pastando, em altiva sobriedade, Minuano, o garanhão branco que era o orgulho e o maior tesouro de Seu Adair. 
 Pulei a porteira da propriedade, naturalmente, para não ter que fechá-la logo depois de ter o trabalho de abri-la. Passei espantando algumas inocentes ovelhas que estavam por ali, recém-tosquiadas. Algumas baliram debilmente uma reclamação. A esposa de Seu Adair foi quem primeiro me viu chegando, ela carregava uma vasilha de alumínio que usava para servir ração aos animais. A imagem daquele lugar, àquela hora do dia, com uma senhora de cabelos grisalhos amarrados em coque, baixa e rechonchuda, sorridente e muito amável, ficaria para sempre em minhas lembranças. Que engraçada a mente humana é. Às vezes registramos episódios que poderiam ser catalogados como não importantes, não especiais, mas que de algum modo e por alguma razão que nos é misteriosa, nos marcam. Como o olhar penetrante e devastador que a prostituta de beira de estrada me lançaria anos depois, já no final de minha adolescência; ou a ninhada de gatinhos que nascera no quarto de ferramentas do meu avô e que eu gostava de observar, quando já morava em uma casa da cidade grande, na região metropolitana, com meus dezenove anos de idade; o garotinho que vira através da janela do ônibus um dia, voltando da minha matrícula em uma escola técnica de ensino médio, ele ia abraçado em um filhote de labrador, segurando ao mesmo tempo com uma das mãos um vasinho de planta. Figuras que, por alguma razão, guardamos em nosso álbum de memórias. 
 A senhora me levara ao marido, Seu Adair estava nos fundos, sentado em um mochinho. Tomava chimarrão, solitário. Antes de me vir chegar, ainda acreditando estar só, ele parecia muito contemplativo, observando os animais e o campo, como que abstraído em pensamentos muito profundos.
 – Adair, tem visita. O guri do Miguel – anunciou-me e disse que nos deixaria, que iria preparar um café com leite e um pão com manteiga para mim. 
 – Ah, mas o quê tu tá fazendo longe de casa essa hora, hôme? – Seu Adair disse isso com um espanto exagerado, cômico, virando-se para mim e fazendo cara de incrédulo, boquiaberto, dando até um tapa na própria coxa. – Teu pai sabe que tu tá aqui? 
 Fui para junto dele e dissipei suas preocupações, afirmando que estava tudo bem, que sabiam onde eu estava. O que era mentira, lógico. Expliquei o motivo de eu ter ido lá, falei o mais claramente que pude, em uma linguagem que qualquer pessoa adulta poderia entender, por mais estúpida que fosse: Fora pedir que não matasse o urubu-rei. Que não o ferisse. E que, se precisasse de suas unhas ou penas para vender aos curandeiros e outros místicos da região, que o capturasse sem machuca-lo e que lhe arrancasse somente algumas peninhas sem importância, ou algumas lascas de unha. 
 Ele deu uma gargalhada, parecia muito surpreso e divertido comigo, riu-se tanto que as lágrimas rolaram pelo seu rosto. Eu estava muito frustrado com aquela reação, não era bem o que eu esperava. Já estava pronto para rebater alguns argumentos, ensaiara durante o trajeto até ali, mas não estava preparado para aquele deboche. Quando acalmou-se, deve ter percebido minha brabeza, logo dizendo:
 – Tá certo, meu amigo. Tá certo. Vâmo fazê então um acordo – disse isso e foi controlando suas feições de riso, ficando mais sério. – Eu tava justamente pensando nisso mesmo. Foi coincidência o senhor aparecer aqui na minha casa justo nessa hora, compadre. 
 Seu Adair piscou um olho para mim ao terminar de falar, novamente percebi aquele brilho estranho em seu olhar, o mesmo que notara dias atrás. Imaginei por um momento que ele talvez soubesse que eu viria a seu encontro, movido pela história do urubu-rei. Ele sorriu, como se adivinhasse meus pensamentos.  
 – Vem, vâmo lá no galpão que eu vô te amostrá uma cousa. 
 Sob a luz fraca de um lampião de querosene que Seu Adair acendeu e pendurou em um prego na parede, fui levado por entre o arado e as carroças do galpão até um conjunto de prateleiras que ficavam no fundo. Sob a claridade esmaecida da chama que projetava estranhas sombras dançantes ao redor, a situação começou a ganhar um ar de mistério. O assunto que fora tratar ali era de grande importância para mim, a hora do dia e o cansaço que estava começando a sentir pareciam estar operando alguma reação com o cheiro de serragem e cocô de vaca do galpão. O som de grilos e os zunidos de outros insetos do lado de fora estavam ficando mais altos conforme o tempo passava e o dia ia escurecendo. Seu Adair mostrou uma espingarda que estava sobre uma das prateleiras. Era a mesma que vira com ele aquele dia.
  – Eu que fiz essa marvada  – disse ele, pousando a mão sobre ela e a alisando, com a um gato. – Eu tive que fazê porque é muito caro pra comprar uma dessas. Não é uma espingarda normal. Essa é de dardo. 
 Fiquei muito interessado na informação, olhando estão com mais atenção para a arma, com curiosidade renovada. Seu Adair prosseguiu:
  – Eu olhei bem como que era feita uma dessas e montei uma pra mim. As munição são cara também, mas essas não tem como fazer, tive que comprar  – apontou com o queixo para outra prateleira mais acima, onde havia uma caixa de metal. 
  – Posso ver?
  – Pode, claro.
 Estendeu a mão e alcançou a caixa. Depositou-a junto da sua arma e abriu a tampa com a solenidade de quem abre a arca perdida. De dentro, tirou um pequeno dardo com penacho vermelho, igual aos que eu via em filmes. Segurou alto, na frente de seus olhos, depois o aproximou de meu rosto. Não ousei levantar a mão para pegar. Toda a seriedade de seus movimentos e a forma como falava sobre aquelas coisas, mais o cenário e todo o contexto do que estava acontecendo, produziram sobre mim uma sensação de descobrimento. Uma sensação especial de estar sendo introduzido em um mundo diferente. Como se cortinas secretas fossem sendo erguidas. E só poderiam ser erguidas daquela forma, naquele lugar e sob aquelas circunstâncias. Somente uma pessoa como Seu Adair, com tudo o que sabia a respeito dele, de sua história, de suas ocupações, somente ele poderia me colocar diante daquele momento de revelação. 
  – Esse dardo não mata o bicho, não é feito pra matar. Esse dardo, ele deixa o bicho tonto. Faz ele cair de sono. Mas não mata – Seu Adair falava como quem compartilha uma ideia com muito sigilo, como se aquilo fizesse parte de algum plano secreto, mas dessa vez não era teatral nem exagerado e isso me colocou em um estado de espírito muito peculiar. 
 Sentia-me nervoso. O suor encharcava as palmas de minhas mãos e as esfregava na barra da camiseta e nas bermudas, para secá-las. Estava diante de uma pessoa com uma estratégia muito elaborada e verdadeiramente genial para alcançar seu objetivo, um homem que tinha a frieza e a paciência de esquematizar uma operação daquelas que, para um menino como eu, era coisa de ficção, das mais fantásticas. Ele devia ser mesmo um homem muito inteligente, diferente da maioria dos que viviam na região, mas gostava de se fazer passar por velho debochado e brincalhão, irresponsável às voltas com seus negócios malucos que pareciam nunca render ganhos materiais. Para mim, agora, Seu Adair era um bruxo-caçador, esperto e dissimulado como os gatos-do-mato. 
 Ainda admirado pela engenhosidade dele em fabricar uma arma daquelas, pelo seu desejo de não matar o urubu-rei que eu nunca vira, mas que já reverenciava e adorava profundamente, não escutei direito quando falou comigo. Tive que pedir para que repetisse.
  – Isso, tu quer me ajudar a pegar o urubu-rei?
 As sombras que o lampião produzia eram altas e esguias, pretas, contrastando com o amarelo caído que tentava iluminar o galpão ao nosso redor. Os olhos de Seu Adair brilhavam. Ele via através de mim. Sua voz era controlada, desprovida de emoção. 
  – Quero – foi tudo quanto pude murmurar. 
  – Eu não tenho como pegar com essa arma, mesmo ela sendo muito boa. Eu achei que dava – prosseguiu –, mas pelo que eu observei do urubu-rei, pelo que eu aprendi olhando ele, o jeito dele, só tem uma maneira de pegar. 

 Nos dias seguintes, não fui caminhar no mato. Fiquei em casa, cuidando dos deveres da escola e me ocupando de atividades mais tranquilas, como folhear os livros do meu avô, seus atlas e brincar no pátio da chácara. Pelas manhãs, ia para a aula e, durante as tardes, ficava onde podia ser visto pelo meu pai e minha babá. A senhora que cuidava de mim havia ficado quase histérica quando já havia caído a noite e eu não voltara ainda de meu passeio, no dia em que fora visitar Seu Adair. Eu não havia contado a ninguém aonde ia, nem mesmo avisado que sairia. 
 Aquela vez, no finzinho do crepúsculo, depois de tomar o café que a esposa de Seu Adair preparara para mim, este me conduziu para casa em sua velha caminhonete rural. Pela estrada, iluminada à frente apenas pelos seus faróis, Seu Adair instruía-me sobre como me comportar dali em diante e enquanto durasse “nossa missão”, como ele chamava. Eu não deveria mais dar sustos nos meus pais que pudessem provocar neles alguma reação indesejada por nós, como por exemplo, leva-los a pôr-me de castigo sem poder sair de casa por alguns dias, ou manter alguma vigilância mais severa sobre mim. Eu deveria comportar-me bem e fazê-los esquecer do episódio. Fazê-los acreditar que era um bom e manso menino, comportado e querido. 
 Enquanto ouvia atentamente as instruções, percebi dentro de mim, não de forma consciente e pensada com palavras, mas como um sentimento muito vivo e claro, que estava sendo ensinado a ser como ele, um caçador e um bruxo estrategista. A noite cobria os morros, alguma coisa do dia ainda se recusava a deitar-se no horizonte, à nossa direita, uma leve claridade esverdeada, cercada de estrelas. 
 Deixou-me em casa, buscou acalmar meus pais e minha babá, explicando, a meias-verdades, que eu fora até sua casa ter com ele sobre um gavião que eu suspeitava estar comendo nossas galinhas, e que queria sua ajuda para eliminá-lo. Eu mesmo disse a minha família que sabia que somente Seu Adair teria meios de acabar com a ameaça do gavião. Mais aliviados, eles o agradeceram por ter-me levado de volta. Quando Seu Adair partiu para sua casa, levei uma das piores broncas de que posso me recordar. Meu pai havia pedido ajuda a amigos seus para me procurarem pela cidade, enquanto ele ia procurar no mato, nas Cinzas, até mesmo na sanga embaixo da pinguela, temendo o pior. Todos em casa estavam muitíssimo felizes por eu ter voltado são e salvo, mas igualmente furiosos. 
 Passei então a semana sendo agradável e previsível. Fizera com que todos acreditassem que eu havia ficado assustado com a experiência e que não pretendia mais, por medo, me afastar tanto assim de casa. Dentro de mim, no entanto, silenciosamente eu aguardava o momento de desferir o golpe, o momento do bote. Como se eu não estivesse enganando somente aos meus pais, meu avô e a senhora que cuidava de mim, mas também ao universo inteiro. Era uma sensação estranha, realmente. Na escola, passei os dias sem ser sequer notado pela professora e muito pouco pelos meus colegas. Estava apenas cuidando de minha educação, fazendo os deveres, cumprindo as tarefas e me relacionando muito comumente com os demais. Estava passando pelo mundo quase sem deixar pegadas, tocando a tudo de leve. Como um gato caminha pelo telhado, com pés de lã, silencioso. Eu evitava mesmo pensar sobre o assunto durante muito tempo, como que para esconder minha verdadeira intenção até de mim mesmo, ocultá-la no canto mais escuro de minha consciência. Eu não me permitia devanear muito a respeito da missão. Precisava encarnar meu disfarce o mais impecavelmente possível, até o momento de agir. Essas eram também instruções que recebera de Seu Adair. Espreitar e aguardar. Eu era uma serpente astuta, um caçador. Isso parecia ter grande importância para a missão sagrada, conforme Seu Adair me fizera acreditar, pois ele enfatizara bem que eu deveria comportar-me daquela forma. Como se fosse um passe de mágica. Um verdadeiro trabalho de feitiçaria que eu o estava ajudando a realizar. Imaginava, então, que mantendo as aparências como estava, faria o urubu-rei aproximar-se acreditando que tudo aqui em terra estava calmo, tranquilo, que poderia pousar sem medo. 

 Um dia, naquela semana em que passara “espreitando”, fui com meu pai ao centro da cidade, acompanha-lo até a lojinha onde vendia suas miniaturas. Ele fora levar algumas para serem colocadas nas prateleiras, vitrines e outras que ficariam no depósito, de estoque. Quem cuidava da loja era um tio meu, irmão do meu pai. Tio Oscar. Ele tinha um jeito engraçado de falar, começava falando muito baixo, quase sussurrando, para depois mudar abruptamente o tom de voz, berrando as palavras e então baixava novamente para um sussurro. Ele era casado e vivia só com a mulher, não tinha filhos. Era bem conhecido na região e, certa vez, candidatou-se a vereador da cidade. Recebeu apenas um voto, o seu próprio. 
 Depois de deixarmos as miniaturas na loja com meu tio de voz oscilante, fomos dar uma volta pelo centro, meu pai e eu. Gostava muito de sua companhia e considerava-me privilegiado por poder escutar as lições que queria me transmitir. Nunca houve um dia em que ele não tivesse me dito alguma frase de efeito, ou proferido qualquer raciocínio relacionado com o que fazíamos então, fosse irmos à pracinha, fosse apenas darmos uma volta sem compromissos pelo centro, qualquer coisa, qualquer lição que pudesse me ensinar, sobre o que fosse.  Naquele dia, passamos pelo centro comercial, com seus pequenos restaurantes a preços populares para servir aos trabalhadores das lojinhas de um-e-noventa-e-nove e mercadinhos em seu horário de almoço. Ali, falou algo sobre as diferenças sociais e uma tal “luta de classes” que na hora eu não pude compreender muito bem. Embora eu não entendesse sempre o que ele queria dizer, eu fingia que estava acompanhando para que ele se orgulhasse e ficasse satisfeito comigo. 
 Fomos depois dar uma passada na pequena rodoviária, onde meu pai foi ter com um amigo seu, um motorista de ônibus corpulento e muito falador que parecia ser do tamanho de uma casa. Lá, observando o ambiente enquanto meu pai jogava um pouco de conversa fora com seu amigo, comecei a experimentar um primeiro entendimento do que ele havia me falado pouco antes, sobre as injustiças sociais. A nossa rodoviária, igual em essência a todas as outras que viria a conhecer depois, lar de senhores sem casa que levavam nas costas suas misérias ocultas em sacos de aniagem, com a sua funcionária de boca e olhos sempre tão bem pintados, os óculos pousados dignamente sobre o nariz, envidraçada na vitrine do guichê por onde atendia as pessoas com uma frieza profissional que a tornava ainda mais bela, como os bustos romanos, séria e precisa. O que eu não via, porém, eram os patrões da moça da vitrine e os patrões deles. Ignorava que existissem. Analisando o quadro a minha frente, senti-me diante de uma armadilha, uma sensação semelhante a que experimentara no galpão de Seu Adair. Diante de mim estava uma realidade que iria enfrentar anos depois, apresentado a ela como um cordeiro levado ao altar do sacrifício. Ingresso à máquina. Fiquei observando o produto daquele mundo, todo enfeitado atrás de um vidro, e seu subproduto, seu rejeito, do lado de fora, procurando alimento nas latas de lixo. 
 Acredito que meu pai tenha parado ali propositalmente, para dar-me oportunidade de comparar o que via com o que ele dissera antes. Um complemento dramático a obra que começara na rua dos restaurantes. Como um caçador astuto, também meu pai havia prendido minha atenção para dar-me um aviso. Ali havia um mundo ao qual eu ainda não fora introduzido. Mas esse era um mundo feio e sem poder. 

  Chegaram o dia e a hora marcados. Como a escola era muito longe de casa, tinha que sair cedo da manhã. Eu costumava ir sozinho, meu pai havia ensinado os caminhos que levariam em segurança e portanto confiava que tudo estaria bem. Cumpri o ritual de sempre, vesti-me, tomei café e escovei os dentes. Peguei minha mochila e calcei os tênis, saindo então para mais um dia de aula. Ao menos, era isso que eu tentava aparentar, inclusive para mim mesmo. No meio do caminho para a escola, percebi a caminhonete de Seu Adair vindo pela rua atrás de mim. Parei e esperei ele me alcançar. Nem mesmo encostou o carro quando estava na minha frente, apenas reduziu a velocidade o bastante para que eu pudesse pular para dentro. Abriu a porta para mim e disse, apressado:
 – Ô, guri! Entra, entra! Vâmo, rapaz! 
 Pulei para dentro carro e bati a porta, Seu Adair acelerou. Ele estava rindo, satisfeito.
 – Mas ah! Agora sim eu vi que tu é dos bão mesmo! Tá fazendo bem o combinado! – ele falava alto, rindo e sacudindo o peito. Seu estado de espírito era contagiante. Eu próprio ri, dizendo a ele que também apreciara sua precisão, sua pontualidade. Disse a ele que estava muito ansioso. 
 – Ah, mascote, não pode. – Seu Adair fez cara muito séria, mas era visivelmente forçado de sua parte, estava brincalhão – Não pode levar ansiedade junto. Deixa na mochila. 
 Ouvindo isso, joguei a mochila ao chão, aos meus pés e me recostei no banco velho e confortável da caminhonete rural. Ambos rimos. Estávamos muito animados. Eu tentava levar a sério seu comentário de não deixar a ansiedade tomar conta de mim, acreditava que, mesmo em tom de brincadeira, o velho estava me dando uma dica importante. 
 – Como que foi a semana? Brincou bastante? Aprendeu o quê na escola? Tu já sabe o “a-e-i-o-u”? – Seu Adair buscava distrair-me enquanto nos conduzia para fora da cidade por uma estrada de terra sem movimento algum. Ele queria fazer com que eu desandasse a falar sobre qualquer assunto não relacionado com a nossa missão, como hoje eu posso perceber. E conseguira. Eu contei-lhe que já havia sido alfabetizado há muito tempo, que já estava na segunda série do ensino fundamental e que sabia todos os Estados brasileiros, todos os meses do ano e quais desses tinham 30 dias e quais tinham 31 - apenas um não se encaixava a regra -, contei-lhe tudo quanto pude sobre a minha vida letiva. Sendo muito jovem ainda, não levei mais que alguns poucos minutos. Hoje eu compreendo a estratégia dele, remover minha ansiedade, minha obsessão sobre o que estávamos prestes a realizar. Tornar-me fluido e livre de pensamentos acerca da missão. Livre de expectativas invasivas. Medo de fracasso. Esperança de sucesso. Tudo o que precisava fazer era seguir o planejado sem interferência de meus sentimentos em relação a isso. Todas as peças estavam dispostas sobre o tabuleiro, a armadilha montada, não havia necessidade de falar ou pensar a respeito, apenas agir. Qualquer outro comportamento poderia pôr tudo a perder. 
 Chegamos ao local combinado. Lá estavam mais três homens, que haviam chegado em outro veículo. Um deles era Seu Adão, meu vizinho e irmão de Seu Adair. Outro era o mesmo que acompanhava Seu Adair no mato, naquele dia já tão distante. O terceiro homem, eu não conhecia, parecia ser o mais moço deles. 
 Seu Adair recapitulou o plano, para certificar-se de que tudo sairia bem. O fez de forma tão impessoal, com frases tão frias, que não despertara nenhuma ansiedade em mim e imagino que o efeito tenha sido o mesmo nos demais. Estávamos vivendo profissionalmente. 
 O objetivo da captura do urubu-rei era a remoção de algumas penas rectrizes e rêmiges, ou seja, da cauda e da asa, respectivamente. Assegurara-me de que não iria depenar o animal por completo, que causaria o menor desconforto possível a ele e que não o prejudicaria removendo somente algumas penas. Essas eram muito valorizadas pelos curandeiros da região, que raríssimamente as possuíam. Seu Adair disse que pagariam uma quantia muito generosa por cada pena. Todos nós ali receberíamos por nosso trabalho. Secretamente, porém, eu já havia decidido não cobrar pela minha participação. Estava muito contente de poder tomar parte no que faríamos e julgava desonesto de minha parte querer lucrar com um aprendizado. Além do mais, queria que a quantia a ser dividida entre eles fosse um pouco maior, para que se animassem a me escolher sempre para aquele tipo de tarefa. 

 O plano era não ferir o animal, para que a magia em suas penas não fosse espantada para algum lugar muito longe de nós, onde não poderíamos jamais reavê-la. Atirar no urubu-rei com dardos tranquilizantes seria muito fácil, portanto a arte seria captura-lo e fazê-lo perceber que o estava sendo. Assim teríamos tempo de explicar a ele que queríamos as penas para os curandeiros ajudarem as pessoas doentes. Teríamos tempo de dizer a ele que não ficasse com medo, que não iríamos fazer-lhe mal. 
 Da caçamba da caminhonete dos outros homens, retiramos um enorme embrulho. O que havia por baixo daqueles panos malcheirosos era ainda mais nojento: um burro morto. O Seu Adair dissera que o burro seria a isca para pegarmos o urubu-rei. Notara que o animal estava particularmente inchado e muito mais leve do que eu esperava, no momento em que ajudara os homens a manuseá-lo. Comentei a esse respeito com Seu Adair. Ele disse que os intestinos, todas as vísceras, haviam sido removidos e que colocaram escoras de madeira dentro da carcaça “pra mantê a redondeza da barriga”, nas palavras dele, que proferiu fazendo um gesto com os braços, como se abraçasse uma barriga enorme e invisível que possuía. 
  – O chefe dos urubu, o rei, é o maior deles. O mais inteligente – explicou Seu Adair  – Mas olha, não tem outro com a vista mais aguçada que a dele! É por isso que ele é o chefe. Ele vai vê o burro primeiro que os outro. Vai vim pra pousar em cima. Vai descê a favor do vento, porque leva o cheiro de carniça pra ele. Vâmo empilhar as tripa que tiramo de dentro perto do rabo, do lado de fora, como se outro bicho já tivesse comido uma parte, compreende? Aí o urubu-rei vai descer mais confiante. Sem pressa. Vai dar uns pulinho, vai vim voandinho, depois vem sentar direto na anca da carcaça do burro. Aí ele vai começar a destrinchar. Até digo que ele vai tentar virar a carcaça, mas não nós vâmo botar as estaca da estrutura de um jeito que o corpo fique na mesma posição sempre, sempre! Elas vão fincada no chão, pelo outro lado do burro, compreende? Ele vai ficar em cima das anca um tempo, isso que vai chamar os outro urubu que vão tá na volta, só esperando. Só depois de tê mais uns três ou quatro companheiro junto que o rei vai começá o trabalho. 
 – E o quê que eu tenho que fazer? – perguntei, já imaginando o que seria. E o pior, acertando. 
 – Tu fica dentro, escondido. Dentro do burro. – disse aquilo com o rosto totalmente inexpressivo, a coisa mais inacreditável do mundo. – Só isso que tu tem que fazer. Eu vou te dar aqui um par de luva de couro, e tu fica sentado lá dentro, esperando o urubu-rei começar a rasgar o cu do burro, abrindo tudo com o bicão dele e comendo o que tem. Tu vai daí agarrar, mas agarrar firme, pelo pescoço, e não vai deixar ele escapar. Eu e os outro vâmo tá de a cavalo, escondido num barranco fundo que tem pra lá. Eu vou ficar cuidando tudo de binóculo. Quando eu vê que tu segurou o bicho, nós viemo de a galope e jogamo a rede por cima dele. Aí tá pego. 
 – Tá... – disse eu, fazendo então uma breve pausa e olhando sério para ele, continuando em seguida: – Mas o senhor tem certeza que vai conseguir dominar o urubu-rei? 
 – Mas claro, meu guri! – toda a confiança do mundo em sua voz grave – Vai todo mundo usar luva grossa, polaina de couro. A garra do urubu-rei é a coisa mais forte que tem. Quebra a canela de hôme grande como se fosse um galhinho.  
 Estava mesmo diante de um caçador sem par. 
 Havia cavalos amarrados às arvores ali perto, preparados para nós pelos que chegaram antes. Fui à garupa com Seu Adair. Deslocamo-nos em um trote lento, despreocupado, por quase uma hora. Uma padiola presa a um dos cavalos trazia o burro morto, enrolado em panos novos, para disfarçar-lhe o fedor. O Seu Adão levava uma sacola, onde estavam as vísceras do animal. Cruzou-me a cabeça, então, um pensamento que me deixou preocupado: haviam encontrado aquele burro daquele jeito mesmo, morto, ou o haviam matado para aquele propósito? 
 – Esses urubu são ruim de ouvido – começou Seu Adair, atraindo minha atenção e distraindo-me dos meus pensamentos. – Não escutam muito bem. O nariz também não é dos melhor. O que eles têm de bão mesmo é os olho. Ah, isso sim. Vâmo ter que costurar toda a carcaça pra não deixar buraco! Não pode ter nem um buraquinho pra tu ficar espiando pra fora, porque se eles vê teus olho lá dentro, nunca mais que eles descem. Eles não pode vê nada! 
 Chegamos, por fim, a uma planície árida, desolada. Os homens começaram o serviço. Eles deitaram o burro aberto ao chão, colocaram algumas estacas na sua barriga e as cruzaram, deixando apenas espaço o suficiente para eu poder me esgueirar para dentro. Fiz então a pergunta que fora abortada anteriormente:
 – Diz uma coisa, Seu Adair, esse burro aí morreu de alguma doença? O senhor acha que posso pegar essa doença também? 
 O Seu Adair olhou para mim, como que incrédulo, logo falando algo que parecia acreditar como uma verdade tão óbvia que nem precisaria ser dita:
 – Doença de burro não pega em gente, meu filho. Se eu fosse menor, eu mesmo ia dentro do burro. 
 Acreditei nele, suas palavras foram proferidas com tamanha confiança que minhas dúvidas foram embora. Eu que não iria temer agora e poluir a experiência das experiências com medo, com qualquer expectativa tola. Para mim, vencer e perder, tudo daria no mesmo. Vencer, no entanto, era apenas mais divertido, mais excitante, então, naturalmente, venceria. 
 Chegou o momento que eu mais temia. O Seu Adair colocou-me dentro da barriga do burro, então cobriram a estrutura com o couro e começaram a costurá-la, deixando somente uma abertura na parte de baixo, para eu poder respirar. O pior momento foi quando a pele ficou fechada completamente sobre mim. A tampa de um caixão. Respirei fundo, pensando sobre os meses do ano e quantos dias cada um possuía, tentando aliviar a tensão. De dentro do burro, minha mente foi tirada dos meses e dias, pois escutava a voz do Seu Adair lá fora, substituindo meus pensamentos por atenção. Ele dava-me instruções finais. Disse que iria assobiar como um passarinho quando o urubu-rei estivesse voando por perto, de modo que eu não ficasse desinformado, nem nervoso ou impaciente. 
 Ouvi os cavalos partindo para longe. Estava só. 

 Dentro da barriga, tudo era escuro e abafado. Ouvia apenas minha respiração. Sentia o chão sob mim e meus batimentos cardíacos. Por longo tempo, em nada pensei. Estava sozinho, aguardando o momento de colher um centímetro cúbico de sorte para realizar a tarefa e, ao mesmo tempo, tentando não pensar a respeito. Tocava a ideia suavemente, quase sem deixar marcas. Aqueles momentos de profunda solidão não me enfraqueceram, pelo contrário, sentia-me calmo, confortável e forte. De repente, o assobio do Seu Adair! O urubu-rei estava nas proximidades. Ouvi então o bater de poderosas asas. Sem pausa entre o cessar do som de suas asas e o tranco do pouso sobre a carcaça do burro, o animal morto começou a balançar violentamente. Logo senti um peso no corpo do burro e os movimentos também cessaram. Ele havia pousado e não mais se movia. Ouvi o bater de outras asas. Logo, silêncio. O assobio do Seu Adair mais uma vez. Preparei-me. O corpo do burro novamente começou a balançar, como que exposto a uma feroz ventania. 
 Algo começara a rasgar sua pele. 
 Uma cabeça enorme e horrível surgiu na minha frente. Um bico muito grande, uma crista vermelha, um olho aberto. 
 Eu, obviamente, gritei e muito.
 Gritei assustado, porém agarrei seu pescoço com ambas as mãos, o mais firmemente que pude com as luvas grossas que davam pouca mobilidade aos dedos. O urubu-rei deve ter ficado muito surpreso, pois demorou a reagir. Isso me deu a chance de agarrar seu pescoço com ainda mais força.  
 O inferno abatera-se sobre mim.
 Ele se recuperou da surpresa. Começou a puxar com toda a força, fiquei espremido contra a estrutura, e logo em seguida parcialmente fora da carcaça, da estrutura e de tudo, agarrado ainda ao pescoço do bicho para salvar minha vida. E gritando. 
 Ouvi os cavalos chegando, a todo galope. Ouvi os gritos do Seu Adair, dizendo:
 – Larga! Larga esse diabo desse bicho! Ele tá voando, vai te levá embora, desgraçado! 
 O rei dos urubus iria mesmo levantar voo comigo agarrado ao seu pescoço, porque eu não intentava soltá-lo agora. Ou então iria rasgar-me todo com a força de suas garras. Só não conseguia atingir-me porque eu puxava a sua cabeça para mim, o que a deixava na metade do caminho entre a estrutura e as vísceras. Suas garras escorregavam nos intestinos soltos e não puderam me tocar nem uma vez. Ele não podia me alcançar. 
 A próxima coisa que percebi foi o Seu Adair saltando em cima do urubu-rei. 

 Em casa, disse que sujara minha roupa brincando no recreio. E que me atrasara um pouco para o almoço porque estava com alguns colegas examinando a carcaça de algum animal já em certo estado de decomposição, que encontramos na saída, no caminho de volta, mas que atraíra muito a nossa curiosidade. Levei bronca pelo estado das roupas e pelo cheiro que estava impregnado não apenas nelas, mas em meu corpo. Usei muito sabonete naquele dia. 
 Minha babá estava escandalizada. Meu pai até achara divertida a história, não fazendo muito caso. Ambos estavam combinando em como contar a minha mãe sobre o ocorrido quando ela chegasse em casa, vinda do trabalho, que era em outra cidade. Meu avô resmungava sobre a minha falta de higiene. Os nossos cães farejavam-me freneticamente, muito atiçados pelos odores que eu trazia mesmo depois de muito me esfregar durante o banho.
 Os dias passaram tranquilamente depois de tudo terminar. Voltara a minha rotina de sempre, brincando pelo pátio e fazendo caminhadas pelo mato, acompanhado dos cães. Minha inclinação a desenhar aves e motivos relacionados logo desaparecera. O totem de resina, que sempre estivera em meu quarto e que só por um período curto de tempo me fora tão fascinante, já tornara a ser o que era. Não mais pensava em urubus ou gaviões. Fizera as pazes com o canário belga. 
 Assim como combinara antes com os caçadores, abri mão de minha parte na divisão dos lucros. Fiquei sabendo tempos depois, pela esposa de Seu Adair, em uma das visitas que fiz a eles, que aquela havia sido, em suas palavras “mais uma bobagem que não deu retorno nenhum, nenhum”. Quando pude ficar a sós com Seu Adair, indaguei-lhe a respeito. Ele contou que ninguém quis pagar bom preço pelas penas, ao contrário do que ele imaginava. Contou que precisou lançar mão de toda uma lábia de vendedor com os místicos da região que, pelo visto, não davam muito valor a penas de urubu-rei. Por fim conseguiu vende-las todas, a preço baixíssimo. Riu, divertido, dizendo que foi ótimo eu ter desistido do meu pagamento na época, pois assim sobraram-lhe mais moedas. Concluíra sua missão, e era isso que lhe importava. 











 O Seu Adair e seus amigos haviam capturado o urubu-rei na rede, logo no mesmo instante em que eu o soltara, por não conseguir mais mantê-lo firme. Ele debatera-se bastante, mas Seu Adair e eu falamos mansamente a ele, olhando-o nos olhos. Dizíamos para manter a calma, que não iríamos feri-lo. Parecia que tentávamos acalmar um senhor de idade muito nervoso, a julgar pelo nosso tom de voz e as palavras que escolhíamos. Ele realmente foi-se acalmando. Seu Adair lhe removera três penas da asa direita e uma da cauda, também do lado direito. 
 – Ah, vai dar uma grana essa do rabo! 
 Os demais se riram do entusiasmo infantil de Seu Adair. Mas eu sabia que era apenas um fingimento. Ele não era um tolo, nem um velho maluco. Era um caçador impecável. 
 Antes de soltarem o urubu-rei, um dos homens que estava conosco, o que eu não conhecia, disse que urubus possuem sete tipos diferentes de carne, cada um próprio para um tipo de cura específico. Ao ouvi-lo, temi que tentasse matar o animal. Devem ter percebido minha expressão, pois todos começaram a rir de mim. Percebi que fora um trote e isso me deixara zangado. Aí, riram ainda mais. Eu já estava bufando de raiva e disse:
 – Como é, vão soltar esse urubu ou não vão? 
 – Vamo soltá – dissera Seu Adair. 
 E assim foi feito. O urubu-rei desfraldou as asas e alçou voo assim que se viu livre. O som de suas asas batendo, o vento que provocavam. Nós cinco ali, reunidos em silêncio. A visão daquela ave sinistra subindo até o céu e depois tomando um rumo para fora de nossas vistas. A caçada havia terminado. 








Humano, demasiadamente humano

“O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”
-- J. Saramago in “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”

 Às vezes, sinto que não tenho sido justo com esse rapaz: Jesus de Nazaré; ou, como a maioria de nós o conhece -- Jesus Cristo. Pensando bem, ele é, provavelmente, o personagem mais injustiçado da história humana ocidental: logo ele, que, aparentemente, não nos deixou nenhum escrito, foi transformado, inicialmente, por seus supostos discípulos; e, depois, por aqueles que criaram o embrião da instituição mais perniciosa de todos os tempos -- a igreja católica --, em Deus! Tudo isso de forma injusta e à revelia!

 Mas, nunca foi Deus -- e penso que nunca quis sê-lo. Conheço alguns escritos sobre ele, além daqueles constantes na bíblia. Foi homem politizado e, portanto, fortemente contrário, não somente à ocupação militar romana de sua terra, mas principalmente, às profundas desigualdades sociais vividas por seu povo. Não é segredo que, à época de sua vida, a sociedade judaica sofria com a forte concentração de renda por poucos “nobres” e sacerdotes. Algo como uma elite burguesa, que se apossava de quase toda riqueza produzida por uma multidão de “miseráveis”. Jesus deve, inclusive, ter sido uma mulher – Maria Madalena, talvez? Ao final das contas; se, de fato nasceu por partenogênese, então era virtualmente impossível ser um homem: mas, uma mulher como líder revolucionário seria algo impensável naquela época, pelo menos nas culturas judaicas e romanas...

 Tivesse nascido na Europa nos séculos XIX ou XX, estaria certamente à frente das lutas socialistas e democráticas do povo trabalhador! Fosse latino americano, teria conhecido Guevara e lutado ao lado ‘dos Castro’; teria enfrentado os regimes totalitários que se instalaram em nosso subcontinente nas décadas de 60-70 do século passado. Fosse indiano, não estaria apenas ao lado de Gandhi, mas à frente deste, na luta pela descolonização definitiva da Índia. Enfim, tudo isso serve apenas para ilustrar que esse Jesus ou Madalena não teve nada de “‘divino”, mas de humano -- e isso sim é relevante! Esse é o meu ponto: humanizar Jesus (ou Madalena)! Não morreu na cruz para “nos salvar” e para ser um Deus, mas por ser demasiadamente humano ao perseguir suas idéias políticas/sociais -- e isso chama-se amor!

 Desejo boas festas e tudo o melhor para todos nós, mulheres e homens -- seres humanos deste planeta!

 Lembremo-nos, pois, não apenas neste Natal -- aliás, é bem pouco provável que Jesus tenha nascido nesta data (a Igreja a escolheu por algum motivo de “propaganda”), mas sempre, que Jesus (ou Madalena) foi um humano como nós. Preocupou-se; ou melhor, ocupou-se com as injustiças sociais e a exploração de seu povo; queria uma sociedade justa e com oportunidades semelhantes para todos, independentemente do berço!



 C. J. C.

Dezembro de 2013.