Cresci em uma cidade no interior do
Estado, desde os primeiros meses de vida até os dez anos de idade. Não só a
cidade era interiorana, mas a região dentro dela onde eu vivia era distante do
mercado, da pequena rodoviária, da praça da igreja, do prédio da prefeitura, da
fábrica e da escola. Nos limites da cidade, bem próximo à estrada, ficava o
lugar onde passara a infância.
A chácara era do tamanho do mundo, cheia de beleza, diversidade e mistério. O pica-pau furava os
troncos, procurando larvas, podia vê-lo de dentro do galpão que havia no
fundão, construído pelo meu pai para fabricar suas peças de artesanato, que
venderia no Centro. O canário belga cantava a tarde inteira, entusiasticamente,
na gaiola pendurada do lado de fora, longe o bastante do telhado para que o
calor da telha de Brasilit não sufocasse o animal, mas nem tão perto do chão
onde os cães pudessem incomodá-lo. Houve época em que se plantou morango, que
embalávamos em caixinhas a serem comercializadas pela cidade. O milho, quando
alto, era floresta virgem sempre pronta a ser desbravada, mas renovada cada
vez, perfeita aventura de salvações por um triz e finais heroicos que eu
naturalmente protagonizava. Uma laranjeira crescia ao lado do galinheiro e o
sombreava, este ficava atrás do quartinho de ferramentas, ambos construídos
ainda pelo meu avô, logo depois de terminar a casa. Os dias eram longos e sua
claridade era de um amarelado permanente, como se fosse sempre fim de tarde. A
rua de chão poeirento era um risco alaranjado entre o pasto e a cerca de casa e
o cinamomo fazia sombra no tronco deitado que servia de banco, as noites ainda
existiam naquele tempo, assim como os pátios e os galos madrugadores.
Nas taquareiras distantes e densas
foi que vi o gavião pela primeira vez. Ele estava pousado na ponta de uma
taboca alta, majestoso, observando a região. O senhor da vida e da morte. A ave
era parda e tinha o bico recurvo. Fui chegando perto muito cautelosamente, nem
sabia porquê, força de alguma intuição vinda muito do fundo, de algum
canto escuro da consciência. Sabia, sem que me contassem, que desses bichos
devíamos aproximar-nos mansamente. Pisava de leve. A mão direita segurando
firme o bodoque, apertando a borracha para não balançar. Mal respirava. Quando
cheguei bem perto da taquareira, fiquei olhando para cima. Ele ainda estava lá,
virando a cabeça ao redor, procurando caça. Enfiei a mão esquerda no bolso da
calça, onde deixava as pedrinhas. Segurei uma. Meu pescoço já estava duro, não
pelo tempo que ficara olhando o gavião, que fora breve, mas pela tensão que eu
sentia. A ave voou embora.
Aos sábados, a babá não vinha. Minha
mãe ficava em casa e eu a acordava cedo para tomarmos café da manhã juntos, um
evento que ocorria só então e no dia seguinte da semana. Meu pai ia correr até
o açude, depois retornava para trabalhar no galpão. Enquanto a mãe iniciava os
cuidados domésticos, eu lhe fazia companhia até o momento em que ficava
entediado e saía para o pátio, o que não demorava muito. Não raro intrometia-me
no trabalho do pai, ficando por perto enquanto preparava resina, derramava-a
nos moldes de látex e desenformava as peças que estavam prontas, tendo sido
fabricadas no dia anterior. Gostava de observar os pequenos rinocerontes,
elefantes, panteras, bustos africanos, totens indígenas e figuras gregas
tomando forma e solidificando-se a partir daquele caldo viscoso furta-cor.
Houve um sábado em que apanhei o
bodoque que meu avô havia confeccionado para mim, juntei algumas pedrinhas nos
bolsos e saí para o mato, do outro lado da estrada da pinguela. O mato bordeava
o antigo quadro da mina, As Cinzas. Um dos cães foi junto comigo, farejando à
frente seus próprios interesses, eu o seguia com uma confiança absoluta.
Eu caminhava cuidando os galhos das
árvores, na esperança de encontrar o gavião. Na inconsequência de minha
infância, deixava o cuidado do chão por onde pisar com o meu cachorro, seguindo
atrás dele. O silêncio era intenso, quebrado apenas pelos nossos passos sobre
folhas secas e trechos de diálogos internos que eu deixava escapar em voz alta,
de vez em quando. O mato era eterno e solitário. Detinha-me ocasionalmente em
frente a algumas árvores e pedras recobertas por líquenes para admirá-las e
apontar com o dedo detalhes que me pareciam mais interessantes em suas formas,
como se chamasse a atenção de alguém para o fenômeno. Havia vozes a certa
altura. Eram homens conversando. Em dado momento nos encontramos. Eles vinham
da direção para onde eu ia, ambos armados com espingardas de fabricação
caseira. Eram caçadores, como eu próprio. Eu conhecia um deles, Seu Adair, mais
velho que meu pai e conhecido dele, morava em um rancho a poucos quilômetros de
nós. O seu rosto era largo e moreno, os zigomas bem angulosos deixavam clara a
descendência indígena, o bigode era cinza-escuro, seu sorriso era largo,
faceiro e carecia de pré-molares. Seu Adair falava alto e ria mais alto ainda,
estufando o peito, com voz grave e um jeito campeiro que eu achava engraçado.
Quando ele me viu, falou ao companheiro:
– Olha ali, tem um “hôme”! – riu-se
então e chegou perto, olhando com teatral interesse o meu bodoque.
– Mas tu tá caçando o quê com essa
baita arma! – virou-se para o outro homem e disse: – É o guri do Miguel.
– Tô caçando um gavião que eu vi
uma vez lá na minha casa – expliquei aos homens.
Ambos riram, mas logo Seu Adair
falou, fazendo-se de sério:
– Ah, tu tá querendo pegar um gavião
então. Ele deve tá comendo as galinha do teu avô lá – ele então olhou bem para
mim, nos meus olhos, e disse como quem compartilha solenemente um segredo: – Eu
tô atrás do urubu-rei.
– Urubu-rei? Ué, mas por quê? –
perguntei, muito curioso e instigado pela entonação de Seu Adair, sem dar-me
conta, no entanto, de que eu também não sabia o motivo pelo qual estava
buscando o gavião.
– Porque é grande – disse e sorriu,
um brilho diferente no olhar.
Meu pai contava que o Seu Adair
tinha um filho, e que era amigo do rapaz quando eram jovens. Um dia, o filho do
Seu Adair morrera tragicamente em um acidente de trânsito, decapitado sob as
ferragens da motocicleta que pilotava. Também contava que o velho gostava muito
de mim por lembra-lo de alguma forma o filho perdido, um homem que eu jamais
viria a saber como era realmente. Seu Adair, além de possuir algumas cabeças de
gado, envolvia-se em diversos empreendimentos que não poderiam ser chamados de
estáveis, o que representava alguma face rebelde, um lado independente e
aventureiro daquele senhor. Era um criador de gado, mas também um jogador. A
certa altura da vida, depois da morte do filho, tornou-se um mestre de muitos
ofícios, assumindo muitos riscos com essa decisão. Era caçador e fornecia
materiais para curandeiros da região, ossos de certos animais, bicos, unhas,
penas, além de ervas e insetos de diversas espécies para ervanários locais e
colecionadores, também aves e mamíferos para lojas de animais domésticos e
taxidermistas. Por conhecer bem as plantas medicinais que cresciam naquele
lugar, ele próprio realizava alguns serviços de curandeiro.
Algumas pessoas da cidade pareciam
acreditar mesmo que o Seu Adair era montado no dinheiro, outras que ele até
conseguia lucrar bastante com suas atividades, mas que não era capaz de manter
ou investir corretamente qualquer fortuna que pudesse juntar. Sim, ele possuía
muitos desafetos e o que não faltava na cidade eram fofoqueiros de plantão que
debatiam a vida alheia o tempo todo. Não só seus detratores, mas também seus
amigos achavam que ele poderia fazer rios de dinheiro facilmente, estabelecendo
o negócio mais próspero da região com aquilo que melhor entendia: caçar animais
e descobrir plantas curativas.
Andava, desde aquele dia no mato,
mais atento ao céu e aos galhos mais altos das árvores que eu conseguia
enxergar. Ainda procurava pelo gavião, mas também agora ansiava ver algum
urubu. Não qualquer urubu, logicamente, mas o urubu-rei. E eu o queria ver para
saber o quão grande realmente era. Os que eu via imóveis no ar, sobrevoando
algum lugar à distância, sobre algum capão ou campo, eram seus meros súditos.
Ao meu entender, naquele tempo em que a imaginação era mais presente do que o
conhecimento, o urubu-rei de Seu Adair era uma ave majestosa, muito grande e
astuta, um poderoso mestre do céu, pai das outras aves e conhecedor dos
mistérios que só os animais que voam poderiam entender, se ele lhes contasse. A
mente de uma criança solitária, justamente por não precisar adequar-se ou
nivelar-se a outras mentes de mesma idade, pode alcançar devaneios altíssimos e
absurdos, por vezes voando muito alto, mas com asas verdadeiras, do tipo que não
derretem por serem feitas de material inapropriado ao aproximar-se do sol.
Em casa, observava o canário e
sentia por ele uma mistura de piedade e desprezo, já que era uma ave condenada
a um universo tão estreito, tão apertado, um pássaro de enfeite. Sobre a antiga
mesa de madeira pesada, do tempo da minha falecida avó, meus desenhos, feitos
com lápis de cor e giz de cera nas folhas de papel que ganhava da mãe, eram
dedicados ao tema “aves”, especialmente gaviões e representações do que eu
entendia por urubu-rei. Algumas figuras, inclusive, ostentavam coroa. Sobre a
escrivaninha do meu quarto, havia uma pequena réplica em resina de um totem
indígena norte-americano, presente do meu pai. O totem consistia de uma coluna
de animais pousados uns sobre os outros, um urso na base, com um lobo sobre
suas costas e, por sua vez, pousada sobre os ombros do lobo, uma águia. Ao
acordar pela manhã eu via antes de tudo, na semiescuridão do quarto, recortada
pela insinuante claridade que vinha da veneziana atrás dela, a águia do totem
de resina. Poderia ser um gavião. Ou o urubu-rei, que eu tanto desejava poder
capturar, porque era grande.
Sabia que uma arma tão pueril quanto
o meu bodoque jamais daria conta de derrubar uma ave de grande porte, nem mesmo
serviria para projetar uma pedra a altura suficiente. Por esse motivo,
imaginava que Seu Adair fosse caçá-lo antes de mim. Ele era um homem adulto e,
portanto, poderia possuir quantas espingardas quisesse. Um dia, às voltas com
essa conclusão, dei-me conta de que meu pai, mesmo sendo um homem adulto,
embora mais jovem que Seu Adair - este era pouco mais jovem que meu avô -, não
tinha arma de qualquer natureza. Em minha recente obsessão, faltara-me à
memória uma lição que meu pai sempre reforçava: a de não tirar uma vida por
prazer ou esporte, fazendo-o somente em caso de necessidade, fosse defesa ou
fome. Meu pai jamais aprovara o fato de eu andar com um objeto como o bodoque,
feito para mim por meu avô, e mais de uma vez o confiscara, ora escondendo onde
julgava que eu não pudesse encontrar, o que se mostrava um engano, ora
atirando-o longe para dentro do milharal ou das taquareiras, onde também sempre
o reencontrava por conhecer muito bem aqueles lugares. Enfim, fora uma fase na
vida de um menino do interior, não diferente de muitos outros. O encantamento e
o respeito pela vida e os seus seres, incutidos em mim pelos insistentes
discursos do meu pai, ao final, suplantaram o momentâneo flerte com a morte e
seus prazeres tão primitivos.
Dando-me conta de que não era matar
ou ferir os animais o que eu queria fazer, passei a ir desarmado em minhas
incursões pelo mato que margeava As Cinzas. Deixara para trás o desejo de matar
o objeto de minha mais nova adoração platônica, feito que repetiria ainda
outras vezes na vida. Estava agora decidido a encontrar o urubu-rei e
observá-lo por quanto tempo pudesse, para admirar os movimentos belos e
poderosos que deveria fazer ao pousar entre os seus urubus-súditos, os quais o
estariam apenas aguardando para que desse o sinal de “podem comer”, todos em
volta de alguma carniça. Eu desejava então estudar seus hábitos, entender seus
métodos, conhecer o mistério. Vê-lo de perto. Talvez agachado atrás de alguma
rocha, ou moita, ou ainda encarapitado sobre algum galho estratégico,
posicionado no melhor ângulo possível para o espetáculo.
Essas fantasias cruzavam-me a cabeça
enquanto passeava todos os dias, mas uma coisa me preocupava. Seu Adair queria
caçar o urubu-rei. Matá-lo. Porque era grande! Se ele encontrasse a ave antes
de mim, antes que eu pudesse observá-la viva, seria a pior tragédia que era
capaz de conceber. Foi com a intenção de dissuadi-lo que, certa tarde, fui até
o rancho onde morava.
Caminhei por quase uma hora, subi a
rua de chão da frente de casa, cruzei a estrada e costeei a propriedade de
outro senhor que vivia ali perto, também conhecido da família, Seu Adão, que
era irmão mais novo de Seu Adair. Atravessei a sanga pela pinguela, segui por
uma estradinha lomba acima e por fim, já com o sol mais baixo, cheguei à casa.
Era uma humilde casinha de teto baixo. Grande mesmo era o galpão onde guardava
suas carroças e um trator. Havia um pequeno pátio de pedra, separado do campo
por uma cerca. Além dessa cerca, o gado. Havia lá também, sereno, pastando, em
altiva sobriedade, Minuano, o garanhão branco que era o orgulho e o maior
tesouro de Seu Adair.
Pulei a porteira da propriedade,
naturalmente, para não ter que fechá-la logo depois de ter o trabalho de
abri-la. Passei espantando algumas inocentes ovelhas que estavam por ali, recém-tosquiadas.
Algumas baliram debilmente uma reclamação. A esposa de Seu Adair foi quem
primeiro me viu chegando, ela carregava uma vasilha de alumínio que usava para
servir ração aos animais. A imagem daquele lugar, àquela hora do dia, com uma
senhora de cabelos grisalhos amarrados em coque, baixa e rechonchuda,
sorridente e muito amável, ficaria para sempre em minhas lembranças. Que
engraçada a mente humana é. Às vezes registramos episódios que poderiam ser
catalogados como não importantes, não especiais, mas que de algum modo e por
alguma razão que nos é misteriosa, nos marcam. Como o olhar penetrante e
devastador que a prostituta de beira de estrada me lançaria anos depois, já no
final de minha adolescência; ou a ninhada de gatinhos que nascera no quarto de
ferramentas do meu avô e que eu gostava de observar, quando já morava em uma
casa da cidade grande, na região metropolitana, com meus dezenove anos de
idade; o garotinho que vira através da janela do ônibus um dia, voltando da
minha matrícula em uma escola técnica de ensino médio, ele ia abraçado em um
filhote de labrador, segurando ao mesmo tempo com uma das mãos um vasinho de
planta. Figuras que, por alguma razão, guardamos em nosso álbum de memórias.
A senhora me levara ao marido, Seu
Adair estava nos fundos, sentado em um mochinho. Tomava chimarrão, solitário.
Antes de me vir chegar, ainda acreditando estar só, ele parecia muito
contemplativo, observando os animais e o campo, como que abstraído em
pensamentos muito profundos.
– Adair, tem visita. O guri do
Miguel – anunciou-me e disse que nos deixaria, que iria preparar um café com
leite e um pão com manteiga para mim.
– Ah, mas o quê tu tá fazendo longe
de casa essa hora, hôme? – Seu Adair disse isso com um espanto exagerado,
cômico, virando-se para mim e fazendo cara de incrédulo, boquiaberto, dando até
um tapa na própria coxa. – Teu pai sabe que tu tá aqui?
Fui para junto dele e dissipei suas
preocupações, afirmando que estava tudo bem, que sabiam onde eu estava. O que
era mentira, lógico. Expliquei o motivo de eu ter ido lá, falei o mais
claramente que pude, em uma linguagem que qualquer pessoa adulta poderia
entender, por mais estúpida que fosse: Fora pedir que não matasse o urubu-rei.
Que não o ferisse. E que, se precisasse de suas unhas ou penas para vender aos
curandeiros e outros místicos da região, que o capturasse sem machuca-lo e que
lhe arrancasse somente algumas peninhas sem importância, ou algumas lascas de
unha.
Ele deu uma gargalhada, parecia
muito surpreso e divertido comigo, riu-se tanto que as lágrimas rolaram pelo
seu rosto. Eu estava muito frustrado com aquela reação, não era bem o que eu
esperava. Já estava pronto para rebater alguns argumentos, ensaiara durante o
trajeto até ali, mas não estava preparado para aquele deboche. Quando
acalmou-se, deve ter percebido minha brabeza, logo dizendo:
– Tá certo, meu amigo. Tá certo.
Vâmo fazê então um acordo – disse isso e foi controlando suas feições de riso,
ficando mais sério. – Eu tava justamente pensando nisso mesmo. Foi coincidência
o senhor aparecer aqui na minha casa justo nessa hora, compadre.
Seu Adair piscou um olho para mim ao
terminar de falar, novamente percebi aquele brilho estranho em seu olhar, o
mesmo que notara dias atrás. Imaginei por um momento que ele talvez soubesse
que eu viria a seu encontro, movido pela história do urubu-rei. Ele sorriu,
como se adivinhasse meus pensamentos.
– Vem, vâmo lá no galpão que eu vô
te amostrá uma cousa.
Sob a luz fraca de um lampião de
querosene que Seu Adair acendeu e pendurou em um prego na parede, fui levado
por entre o arado e as carroças do galpão até um conjunto de prateleiras que
ficavam no fundo. Sob a claridade esmaecida da chama que projetava estranhas
sombras dançantes ao redor, a situação começou a ganhar um ar de mistério. O
assunto que fora tratar ali era de grande importância para mim, a hora do dia e
o cansaço que estava começando a sentir pareciam estar operando alguma reação
com o cheiro de serragem e cocô de vaca do galpão. O som de grilos e os zunidos
de outros insetos do lado de fora estavam ficando mais altos conforme o tempo
passava e o dia ia escurecendo. Seu Adair mostrou uma espingarda que estava
sobre uma das prateleiras. Era a mesma que vira com ele aquele dia.
– Eu que fiz essa marvada –
disse ele, pousando a mão sobre ela e a alisando, com a um gato. – Eu tive que
fazê porque é muito caro pra comprar uma dessas. Não é uma espingarda normal.
Essa é de dardo.
Fiquei muito interessado na
informação, olhando estão com mais atenção para a arma, com curiosidade
renovada. Seu Adair prosseguiu:
– Eu olhei bem como que era feita
uma dessas e montei uma pra mim. As munição são cara também, mas essas não tem
como fazer, tive que comprar – apontou com o queixo para outra prateleira
mais acima, onde havia uma caixa de metal.
– Posso ver?
– Pode, claro.
Estendeu a mão e alcançou a caixa.
Depositou-a junto da sua arma e abriu a tampa com a solenidade de quem abre a
arca perdida. De dentro, tirou um pequeno dardo com penacho vermelho, igual aos
que eu via em filmes. Segurou alto, na frente de seus olhos, depois o aproximou
de meu rosto. Não ousei levantar a mão para pegar. Toda a seriedade de seus
movimentos e a forma como falava sobre aquelas coisas, mais o cenário e todo o
contexto do que estava acontecendo, produziram sobre mim uma sensação de
descobrimento. Uma sensação especial de estar sendo introduzido em um mundo
diferente. Como se cortinas secretas fossem sendo erguidas. E só poderiam ser
erguidas daquela forma, naquele lugar e sob aquelas circunstâncias. Somente uma
pessoa como Seu Adair, com tudo o que sabia a respeito dele, de sua história,
de suas ocupações, somente ele poderia me colocar diante daquele momento de
revelação.
– Esse dardo não mata o bicho, não
é feito pra matar. Esse dardo, ele deixa o bicho tonto. Faz ele cair de sono.
Mas não mata – Seu Adair falava como quem compartilha uma ideia com muito
sigilo, como se aquilo fizesse parte de algum plano secreto, mas dessa vez não
era teatral nem exagerado e isso me colocou em um estado de espírito muito
peculiar.
Sentia-me nervoso. O suor encharcava
as palmas de minhas mãos e as esfregava na barra da camiseta e nas bermudas,
para secá-las. Estava diante de uma pessoa com uma estratégia muito elaborada e
verdadeiramente genial para alcançar seu objetivo, um homem que tinha a frieza
e a paciência de esquematizar uma operação daquelas que, para um menino como
eu, era coisa de ficção, das mais fantásticas. Ele devia ser mesmo um homem
muito inteligente, diferente da maioria dos que viviam na região, mas gostava
de se fazer passar por velho debochado e brincalhão, irresponsável às voltas
com seus negócios malucos que pareciam nunca render ganhos materiais. Para mim,
agora, Seu Adair era um bruxo-caçador, esperto e dissimulado como os
gatos-do-mato.
Ainda admirado pela engenhosidade
dele em fabricar uma arma daquelas, pelo seu desejo de não matar o urubu-rei
que eu nunca vira, mas que já reverenciava e adorava profundamente, não escutei
direito quando falou comigo. Tive que pedir para que repetisse.
– Isso, tu quer me ajudar a pegar o
urubu-rei?
As sombras que o lampião produzia
eram altas e esguias, pretas, contrastando com o amarelo caído que tentava
iluminar o galpão ao nosso redor. Os olhos de Seu Adair brilhavam. Ele via
através de mim. Sua voz era controlada, desprovida de emoção.
– Quero – foi tudo quanto pude
murmurar.
– Eu não tenho como pegar com essa
arma, mesmo ela sendo muito boa. Eu achei que dava – prosseguiu –, mas pelo que
eu observei do urubu-rei, pelo que eu aprendi olhando ele, o jeito dele, só tem
uma maneira de pegar.
Nos dias seguintes, não fui caminhar
no mato. Fiquei em casa, cuidando dos deveres da escola e me ocupando de
atividades mais tranquilas, como folhear os livros do meu avô, seus atlas e
brincar no pátio da chácara. Pelas manhãs, ia para a aula e, durante as tardes,
ficava onde podia ser visto pelo meu pai e minha babá. A senhora que cuidava de
mim havia ficado quase histérica quando já havia caído a noite e eu não voltara
ainda de meu passeio, no dia em que fora visitar Seu Adair. Eu não havia
contado a ninguém aonde ia, nem mesmo avisado que sairia.
Aquela vez, no finzinho do
crepúsculo, depois de tomar o café que a esposa de Seu Adair preparara para
mim, este me conduziu para casa em sua velha caminhonete rural. Pela estrada,
iluminada à frente apenas pelos seus faróis, Seu Adair instruía-me sobre como
me comportar dali em diante e enquanto durasse “nossa missão”, como ele chamava.
Eu não deveria mais dar sustos nos meus pais que pudessem provocar neles alguma
reação indesejada por nós, como por exemplo, leva-los a pôr-me de castigo sem
poder sair de casa por alguns dias, ou manter alguma vigilância mais severa
sobre mim. Eu deveria comportar-me bem e fazê-los esquecer do episódio.
Fazê-los acreditar que era um bom e manso menino, comportado e querido.
Enquanto ouvia atentamente as
instruções, percebi dentro de mim, não de forma consciente e pensada com
palavras, mas como um sentimento muito vivo e claro, que estava sendo ensinado
a ser como ele, um caçador e um bruxo estrategista. A noite cobria os morros,
alguma coisa do dia ainda se recusava a deitar-se no horizonte, à nossa
direita, uma leve claridade esverdeada, cercada de estrelas.
Deixou-me em casa, buscou acalmar
meus pais e minha babá, explicando, a meias-verdades, que eu fora até sua casa
ter com ele sobre um gavião que eu suspeitava estar comendo nossas galinhas, e
que queria sua ajuda para eliminá-lo. Eu mesmo disse a minha família que sabia
que somente Seu Adair teria meios de acabar com a ameaça do gavião. Mais
aliviados, eles o agradeceram por ter-me levado de volta. Quando Seu Adair
partiu para sua casa, levei uma das piores broncas de que posso me recordar. Meu
pai havia pedido ajuda a amigos seus para me procurarem pela cidade, enquanto
ele ia procurar no mato, nas Cinzas, até mesmo na sanga embaixo da pinguela,
temendo o pior. Todos em casa estavam muitíssimo felizes por eu ter voltado são
e salvo, mas igualmente furiosos.
Passei então a semana sendo
agradável e previsível. Fizera com que todos acreditassem que eu havia ficado
assustado com a experiência e que não pretendia mais, por medo, me afastar
tanto assim de casa. Dentro de mim, no entanto, silenciosamente eu aguardava o
momento de desferir o golpe, o momento do bote. Como se eu não estivesse
enganando somente aos meus pais, meu avô e a senhora que cuidava de mim, mas
também ao universo inteiro. Era uma sensação estranha, realmente. Na escola,
passei os dias sem ser sequer notado pela professora e muito pouco pelos meus
colegas. Estava apenas cuidando de minha educação, fazendo os deveres,
cumprindo as tarefas e me relacionando muito comumente com os demais. Estava
passando pelo mundo quase sem deixar pegadas, tocando a tudo de leve. Como um
gato caminha pelo telhado, com pés de lã, silencioso. Eu evitava mesmo pensar
sobre o assunto durante muito tempo, como que para esconder minha verdadeira
intenção até de mim mesmo, ocultá-la no canto mais escuro de minha consciência.
Eu não me permitia devanear muito a respeito da missão. Precisava encarnar meu
disfarce o mais impecavelmente possível, até o momento de agir. Essas eram
também instruções que recebera de Seu Adair. Espreitar e aguardar. Eu era uma
serpente astuta, um caçador. Isso parecia ter grande importância para a missão
sagrada, conforme Seu Adair me fizera acreditar, pois ele enfatizara bem que eu
deveria comportar-me daquela forma. Como se fosse um passe de mágica. Um
verdadeiro trabalho de feitiçaria que eu o estava ajudando a realizar.
Imaginava, então, que mantendo as aparências como estava, faria o urubu-rei
aproximar-se acreditando que tudo aqui em terra estava calmo, tranquilo, que
poderia pousar sem medo.
Um dia, naquela semana em que passara
“espreitando”, fui com meu pai ao centro da cidade, acompanha-lo até a lojinha
onde vendia suas miniaturas. Ele fora levar algumas para serem colocadas nas
prateleiras, vitrines e outras que ficariam no depósito, de estoque. Quem
cuidava da loja era um tio meu, irmão do meu pai. Tio Oscar. Ele tinha um jeito
engraçado de falar, começava falando muito baixo, quase sussurrando, para
depois mudar abruptamente o tom de voz, berrando as palavras e então baixava
novamente para um sussurro. Ele era casado e vivia só com a mulher, não tinha
filhos. Era bem conhecido na região e, certa vez, candidatou-se a vereador da
cidade. Recebeu apenas um voto, o seu próprio.
Depois de deixarmos as miniaturas na
loja com meu tio de voz oscilante, fomos dar uma volta pelo centro, meu pai e
eu. Gostava muito de sua companhia e considerava-me privilegiado por poder
escutar as lições que queria me transmitir. Nunca houve um dia em que ele não
tivesse me dito alguma frase de efeito, ou proferido qualquer raciocínio
relacionado com o que fazíamos então, fosse irmos à pracinha, fosse apenas
darmos uma volta sem compromissos pelo centro, qualquer coisa, qualquer lição
que pudesse me ensinar, sobre o que fosse. Naquele dia, passamos pelo
centro comercial, com seus pequenos restaurantes a preços populares para servir
aos trabalhadores das lojinhas de um-e-noventa-e-nove e mercadinhos em seu
horário de almoço. Ali, falou algo sobre as diferenças sociais e uma tal “luta
de classes” que na hora eu não pude compreender muito bem. Embora eu não
entendesse sempre o que ele queria dizer, eu fingia que estava acompanhando
para que ele se orgulhasse e ficasse satisfeito comigo.
Fomos depois dar uma passada na
pequena rodoviária, onde meu pai foi ter com um amigo seu, um motorista de
ônibus corpulento e muito falador que parecia ser do tamanho de uma casa. Lá,
observando o ambiente enquanto meu pai jogava um pouco de conversa fora com seu
amigo, comecei a experimentar um primeiro entendimento do que ele havia me
falado pouco antes, sobre as injustiças sociais. A nossa rodoviária, igual em
essência a todas as outras que viria a conhecer depois, lar de senhores sem
casa que levavam nas costas suas misérias ocultas em sacos de aniagem, com a
sua funcionária de boca e olhos sempre tão bem pintados, os óculos pousados
dignamente sobre o nariz, envidraçada na vitrine do guichê por onde atendia as
pessoas com uma frieza profissional que a tornava ainda mais bela, como os
bustos romanos, séria e precisa. O que eu não via, porém, eram os patrões da
moça da vitrine e os patrões deles. Ignorava que existissem. Analisando o
quadro a minha frente, senti-me diante de uma armadilha, uma sensação
semelhante a que experimentara no galpão de Seu Adair. Diante de mim estava uma
realidade que iria enfrentar anos depois, apresentado a ela como um cordeiro
levado ao altar do sacrifício. Ingresso à máquina. Fiquei observando o produto
daquele mundo, todo enfeitado atrás de um vidro, e seu subproduto, seu rejeito,
do lado de fora, procurando alimento nas latas de lixo.
Acredito que meu pai tenha parado
ali propositalmente, para dar-me oportunidade de comparar o que via com o que
ele dissera antes. Um complemento dramático a obra que começara na rua dos
restaurantes. Como um caçador astuto, também meu pai havia prendido minha
atenção para dar-me um aviso. Ali havia um mundo ao qual eu ainda não fora
introduzido. Mas esse era um mundo feio e sem poder.
Chegaram o dia e a hora marcados.
Como a escola era muito longe de casa, tinha que sair cedo da manhã. Eu
costumava ir sozinho, meu pai havia ensinado os caminhos que levariam em
segurança e portanto confiava que tudo estaria bem. Cumpri o ritual de sempre,
vesti-me, tomei café e escovei os dentes. Peguei minha mochila e calcei os
tênis, saindo então para mais um dia de aula. Ao menos, era isso que eu tentava
aparentar, inclusive para mim mesmo. No meio do caminho para a escola, percebi
a caminhonete de Seu Adair vindo pela rua atrás de mim. Parei e esperei ele me
alcançar. Nem mesmo encostou o carro quando estava na minha frente, apenas
reduziu a velocidade o bastante para que eu pudesse pular para dentro. Abriu a
porta para mim e disse, apressado:
– Ô, guri! Entra, entra! Vâmo,
rapaz!
Pulei para dentro carro e bati a
porta, Seu Adair acelerou. Ele estava rindo, satisfeito.
– Mas ah! Agora sim eu vi que tu é
dos bão mesmo! Tá fazendo bem o combinado! – ele falava alto, rindo e sacudindo
o peito. Seu estado de espírito era contagiante. Eu próprio ri, dizendo a ele
que também apreciara sua precisão, sua pontualidade. Disse a ele que estava
muito ansioso.
– Ah, mascote, não pode. – Seu Adair
fez cara muito séria, mas era visivelmente forçado de sua parte, estava
brincalhão – Não pode levar ansiedade junto. Deixa na mochila.
Ouvindo isso, joguei a mochila ao
chão, aos meus pés e me recostei no banco velho e confortável da caminhonete
rural. Ambos rimos. Estávamos muito animados. Eu tentava levar a sério seu
comentário de não deixar a ansiedade tomar conta de mim, acreditava que, mesmo
em tom de brincadeira, o velho estava me dando uma dica importante.
– Como que foi a semana? Brincou
bastante? Aprendeu o quê na escola? Tu já sabe o “a-e-i-o-u”? – Seu Adair
buscava distrair-me enquanto nos conduzia para fora da cidade por uma estrada
de terra sem movimento algum. Ele queria fazer com que eu desandasse a falar
sobre qualquer assunto não relacionado com a nossa missão, como hoje eu posso
perceber. E conseguira. Eu contei-lhe que já havia sido alfabetizado há muito
tempo, que já estava na segunda série do ensino fundamental e que sabia todos
os Estados brasileiros, todos os meses do ano e quais desses tinham 30 dias e
quais tinham 31 - apenas um não se encaixava a regra -, contei-lhe tudo quanto
pude sobre a minha vida letiva. Sendo muito jovem ainda, não levei mais que
alguns poucos minutos. Hoje eu compreendo a estratégia dele, remover minha
ansiedade, minha obsessão sobre o que estávamos prestes a realizar. Tornar-me
fluido e livre de pensamentos acerca da missão. Livre de expectativas
invasivas. Medo de fracasso. Esperança de sucesso. Tudo o que precisava fazer
era seguir o planejado sem interferência de meus sentimentos em relação a isso.
Todas as peças estavam dispostas sobre o tabuleiro, a armadilha montada, não
havia necessidade de falar ou pensar a respeito, apenas agir. Qualquer outro
comportamento poderia pôr tudo a perder.
Chegamos ao local combinado. Lá
estavam mais três homens, que haviam chegado em outro veículo. Um deles era Seu
Adão, meu vizinho e irmão de Seu Adair. Outro era o mesmo que acompanhava Seu
Adair no mato, naquele dia já tão distante. O terceiro homem, eu não conhecia,
parecia ser o mais moço deles.
Seu Adair recapitulou o plano, para
certificar-se de que tudo sairia bem. O fez de forma tão impessoal, com frases
tão frias, que não despertara nenhuma ansiedade em mim e imagino que o efeito
tenha sido o mesmo nos demais. Estávamos vivendo profissionalmente.
O objetivo da captura do urubu-rei
era a remoção de algumas penas rectrizes e rêmiges, ou seja, da cauda e da asa,
respectivamente. Assegurara-me de que não iria depenar o animal por completo,
que causaria o menor desconforto possível a ele e que não o prejudicaria
removendo somente algumas penas. Essas eram muito valorizadas pelos curandeiros
da região, que raríssimamente as possuíam. Seu Adair disse que pagariam uma
quantia muito generosa por cada pena. Todos nós ali receberíamos por nosso
trabalho. Secretamente, porém, eu já havia decidido não cobrar pela minha
participação. Estava muito contente de poder tomar parte no que faríamos e
julgava desonesto de minha parte querer lucrar com um aprendizado. Além do
mais, queria que a quantia a ser dividida entre eles fosse um pouco maior, para
que se animassem a me escolher sempre para aquele tipo de tarefa.
O plano era não ferir o animal, para
que a magia em suas penas não fosse espantada para algum lugar muito longe de
nós, onde não poderíamos jamais reavê-la. Atirar no urubu-rei com dardos
tranquilizantes seria muito fácil, portanto a arte seria captura-lo e fazê-lo
perceber que o estava sendo. Assim teríamos tempo de explicar a ele que queríamos
as penas para os curandeiros ajudarem as pessoas doentes. Teríamos tempo de
dizer a ele que não ficasse com medo, que não iríamos fazer-lhe mal.
Da caçamba da caminhonete dos outros
homens, retiramos um enorme embrulho. O que havia por baixo daqueles panos
malcheirosos era ainda mais nojento: um burro morto. O Seu Adair dissera que o
burro seria a isca para pegarmos o urubu-rei. Notara que o animal estava
particularmente inchado e muito mais leve do que eu esperava, no momento em que
ajudara os homens a manuseá-lo. Comentei a esse respeito com Seu Adair. Ele
disse que os intestinos, todas as vísceras, haviam sido removidos e que
colocaram escoras de madeira dentro da carcaça “pra mantê a redondeza da
barriga”, nas palavras dele, que proferiu fazendo um gesto com os braços, como
se abraçasse uma barriga enorme e invisível que possuía.
– O chefe dos urubu, o rei, é
o maior deles. O mais inteligente – explicou Seu Adair – Mas olha, não
tem outro com a vista mais aguçada que a dele! É por isso que ele é o chefe.
Ele vai vê o burro primeiro que os outro. Vai vim pra pousar em cima. Vai descê
a favor do vento, porque leva o cheiro de carniça pra ele. Vâmo empilhar as
tripa que tiramo de dentro perto do rabo, do lado de fora, como se outro bicho
já tivesse comido uma parte, compreende? Aí o urubu-rei vai descer mais
confiante. Sem pressa. Vai dar uns pulinho, vai vim voandinho, depois vem
sentar direto na anca da carcaça do burro. Aí ele vai começar a destrinchar.
Até digo que ele vai tentar virar a carcaça, mas não nós vâmo botar as estaca
da estrutura de um jeito que o corpo fique na mesma posição sempre, sempre!
Elas vão fincada no chão, pelo outro lado do burro, compreende? Ele vai ficar
em cima das anca um tempo, isso que vai chamar os outro urubu que vão tá na
volta, só esperando. Só depois de tê mais uns três ou quatro companheiro junto
que o rei vai começá o trabalho.
– E o quê que eu tenho que fazer? –
perguntei, já imaginando o que seria. E o pior, acertando.
– Tu fica dentro, escondido. Dentro
do burro. – disse aquilo com o rosto totalmente inexpressivo, a coisa mais
inacreditável do mundo. – Só isso que tu tem que fazer. Eu vou te dar aqui um
par de luva de couro, e tu fica sentado lá dentro, esperando o urubu-rei
começar a rasgar o cu do burro, abrindo tudo com o bicão dele e comendo o que
tem. Tu vai daí agarrar, mas agarrar firme, pelo pescoço, e não vai deixar ele
escapar. Eu e os outro vâmo tá de a cavalo, escondido num barranco fundo que
tem pra lá. Eu vou ficar cuidando tudo de binóculo. Quando eu vê que tu segurou
o bicho, nós viemo de a galope e jogamo a rede por cima dele. Aí tá pego.
– Tá... – disse eu, fazendo então
uma breve pausa e olhando sério para ele, continuando em seguida: – Mas o
senhor tem certeza que vai conseguir dominar o urubu-rei?
– Mas claro, meu guri! – toda a
confiança do mundo em sua voz grave – Vai todo mundo usar luva grossa, polaina
de couro. A garra do urubu-rei é a coisa mais forte que tem. Quebra a canela de
hôme grande como se fosse um galhinho.
Estava mesmo diante de um caçador
sem par.
Havia cavalos amarrados às arvores
ali perto, preparados para nós pelos que chegaram antes. Fui à garupa com Seu
Adair. Deslocamo-nos em um trote lento, despreocupado, por quase uma hora. Uma
padiola presa a um dos cavalos trazia o burro morto, enrolado em panos novos,
para disfarçar-lhe o fedor. O Seu Adão levava uma sacola, onde estavam as
vísceras do animal. Cruzou-me a cabeça, então, um pensamento que me deixou
preocupado: haviam encontrado aquele burro daquele jeito mesmo, morto, ou o
haviam matado para aquele propósito?
– Esses urubu são ruim de ouvido –
começou Seu Adair, atraindo minha atenção e distraindo-me dos meus pensamentos.
– Não escutam muito bem. O nariz também não é dos melhor. O que eles têm de bão
mesmo é os olho. Ah, isso sim. Vâmo ter que costurar toda a carcaça pra não
deixar buraco! Não pode ter nem um buraquinho pra tu ficar espiando pra fora,
porque se eles vê teus olho lá dentro, nunca mais que eles descem. Eles não
pode vê nada!
Chegamos, por fim, a uma planície
árida, desolada. Os homens começaram o serviço. Eles deitaram o burro aberto ao
chão, colocaram algumas estacas na sua barriga e as cruzaram, deixando apenas
espaço o suficiente para eu poder me esgueirar para dentro. Fiz então a pergunta
que fora abortada anteriormente:
– Diz uma coisa, Seu Adair, esse
burro aí morreu de alguma doença? O senhor acha que posso pegar essa doença
também?
O Seu Adair olhou para mim, como que
incrédulo, logo falando algo que parecia acreditar como uma verdade tão óbvia
que nem precisaria ser dita:
– Doença de burro não pega em gente,
meu filho. Se eu fosse menor, eu mesmo ia dentro do burro.
Acreditei nele, suas palavras foram
proferidas com tamanha confiança que minhas dúvidas foram embora. Eu que não
iria temer agora e poluir a experiência das experiências com medo, com qualquer
expectativa tola. Para mim, vencer e perder, tudo daria no mesmo. Vencer, no
entanto, era apenas mais divertido, mais excitante, então, naturalmente,
venceria.
Chegou o momento que eu mais temia.
O Seu Adair colocou-me dentro da barriga do burro, então cobriram a estrutura
com o couro e começaram a costurá-la, deixando somente uma abertura na parte de
baixo, para eu poder respirar. O pior momento foi quando a pele ficou fechada
completamente sobre mim. A tampa de um caixão. Respirei fundo, pensando sobre
os meses do ano e quantos dias cada um possuía, tentando aliviar a tensão. De
dentro do burro, minha mente foi tirada dos meses e dias, pois escutava a voz
do Seu Adair lá fora, substituindo meus pensamentos por atenção. Ele dava-me
instruções finais. Disse que iria assobiar como um passarinho quando o
urubu-rei estivesse voando por perto, de modo que eu não ficasse desinformado,
nem nervoso ou impaciente.
Ouvi os cavalos partindo para longe.
Estava só.
Dentro da barriga, tudo era escuro e
abafado. Ouvia apenas minha respiração. Sentia o chão sob mim e meus batimentos
cardíacos. Por longo tempo, em nada pensei. Estava sozinho, aguardando o
momento de colher um centímetro cúbico de sorte para realizar a tarefa e, ao
mesmo tempo, tentando não pensar a respeito. Tocava a ideia suavemente, quase
sem deixar marcas. Aqueles momentos de profunda solidão não me enfraqueceram,
pelo contrário, sentia-me calmo, confortável e forte. De repente, o assobio do
Seu Adair! O urubu-rei estava nas proximidades. Ouvi então o bater de poderosas
asas. Sem pausa entre o cessar do som de suas asas e o tranco do pouso sobre a
carcaça do burro, o animal morto começou a balançar violentamente. Logo senti
um peso no corpo do burro e os movimentos também cessaram. Ele havia pousado e
não mais se movia. Ouvi o bater de outras asas. Logo, silêncio. O assobio do
Seu Adair mais uma vez. Preparei-me. O corpo do burro novamente começou a
balançar, como que exposto a uma feroz ventania.
Algo começara a rasgar sua pele.
Uma cabeça enorme e horrível surgiu
na minha frente. Um bico muito grande, uma crista vermelha, um olho aberto.
Eu, obviamente, gritei e muito.
Gritei assustado, porém agarrei seu
pescoço com ambas as mãos, o mais firmemente que pude com as luvas grossas que
davam pouca mobilidade aos dedos. O urubu-rei deve ter ficado muito surpreso,
pois demorou a reagir. Isso me deu a chance de agarrar seu pescoço com ainda
mais força.
O inferno abatera-se sobre mim.
Ele se recuperou da surpresa.
Começou a puxar com toda a força, fiquei espremido contra a estrutura, e logo
em seguida parcialmente fora da carcaça, da estrutura e de tudo, agarrado ainda
ao pescoço do bicho para salvar minha vida. E gritando.
Ouvi os cavalos chegando, a todo
galope. Ouvi os gritos do Seu Adair, dizendo:
– Larga! Larga esse diabo desse
bicho! Ele tá voando, vai te levá embora, desgraçado!
O rei dos urubus iria mesmo levantar
voo comigo agarrado ao seu pescoço, porque eu não intentava soltá-lo agora. Ou
então iria rasgar-me todo com a força de suas garras. Só não conseguia
atingir-me porque eu puxava a sua cabeça para mim, o que a deixava na metade do
caminho entre a estrutura e as vísceras. Suas garras escorregavam nos
intestinos soltos e não puderam me tocar nem uma vez. Ele não podia me
alcançar.
A próxima coisa que percebi foi o
Seu Adair saltando em cima do urubu-rei.
Em casa, disse que sujara minha
roupa brincando no recreio. E que me atrasara um pouco para o almoço porque
estava com alguns colegas examinando a carcaça de algum animal já em certo
estado de decomposição, que encontramos na saída, no caminho de volta, mas que
atraíra muito a nossa curiosidade. Levei bronca pelo estado das roupas e pelo
cheiro que estava impregnado não apenas nelas, mas em meu corpo. Usei muito
sabonete naquele dia.
Minha babá estava escandalizada. Meu
pai até achara divertida a história, não fazendo muito caso. Ambos estavam
combinando em como contar a minha mãe sobre o ocorrido quando ela chegasse em
casa, vinda do trabalho, que era em outra cidade. Meu avô resmungava sobre a
minha falta de higiene. Os nossos cães farejavam-me freneticamente, muito
atiçados pelos odores que eu trazia mesmo depois de muito me esfregar durante o
banho.
Os dias passaram tranquilamente
depois de tudo terminar. Voltara a minha rotina de sempre, brincando pelo pátio
e fazendo caminhadas pelo mato, acompanhado dos cães. Minha inclinação a
desenhar aves e motivos relacionados logo desaparecera. O totem de resina, que
sempre estivera em meu quarto e que só por um período curto de tempo me fora
tão fascinante, já tornara a ser o que era. Não mais pensava em urubus ou
gaviões. Fizera as pazes com o canário belga.
Assim como combinara antes com os
caçadores, abri mão de minha parte na divisão dos lucros. Fiquei sabendo tempos
depois, pela esposa de Seu Adair, em uma das visitas que fiz a eles, que aquela
havia sido, em suas palavras “mais uma bobagem que não deu retorno nenhum,
nenhum”. Quando pude ficar a sós com Seu Adair, indaguei-lhe a respeito. Ele
contou que ninguém quis pagar bom preço pelas penas, ao contrário do que ele
imaginava. Contou que precisou lançar mão de toda uma lábia de vendedor com os
místicos da região que, pelo visto, não davam muito valor a penas de urubu-rei.
Por fim conseguiu vende-las todas, a preço baixíssimo. Riu, divertido, dizendo
que foi ótimo eu ter desistido do meu pagamento na época, pois assim
sobraram-lhe mais moedas. Concluíra sua missão, e era isso que lhe importava.
O Seu Adair e seus amigos haviam
capturado o urubu-rei na rede, logo no mesmo instante em que eu o soltara, por
não conseguir mais mantê-lo firme. Ele debatera-se bastante, mas Seu Adair e eu
falamos mansamente a ele, olhando-o nos olhos. Dizíamos para manter a calma,
que não iríamos feri-lo. Parecia que tentávamos acalmar um senhor de idade
muito nervoso, a julgar pelo nosso tom de voz e as palavras que escolhíamos.
Ele realmente foi-se acalmando. Seu Adair lhe removera três penas da asa
direita e uma da cauda, também do lado direito.
– Ah, vai dar uma grana essa do
rabo!
Os demais se riram do entusiasmo
infantil de Seu Adair. Mas eu sabia que era apenas um fingimento. Ele não era
um tolo, nem um velho maluco. Era um caçador impecável.
Antes de soltarem o urubu-rei, um
dos homens que estava conosco, o que eu não conhecia, disse que urubus possuem
sete tipos diferentes de carne, cada um próprio para um tipo de cura
específico. Ao ouvi-lo, temi que tentasse matar o animal. Devem ter percebido
minha expressão, pois todos começaram a rir de mim. Percebi que fora um trote e
isso me deixara zangado. Aí, riram ainda mais. Eu já estava bufando de raiva e
disse:
– Como é, vão soltar esse urubu ou
não vão?
– Vamo soltá – dissera Seu Adair.
E assim foi feito. O urubu-rei desfraldou
as asas e alçou voo assim que se viu livre. O som de suas asas batendo, o vento
que provocavam. Nós cinco ali, reunidos em silêncio. A visão daquela ave
sinistra subindo até o céu e depois tomando um rumo para fora de nossas vistas.
A caçada havia terminado.
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